Correio Braziliense, n. 20632, 18/11/2019. Mundo, p. 13

Ultimato para a interina



Camponeses da região central da Bolívia, simpatizantes do ex-presidente Evo Morales, que renunciou e se exilou há uma semana, deram ontem prazo de 48 horas para que a substituta interina autoproclamada, Jeanine Áñez, renuncie também. A crise política desatada pela eleição presidencial de 20 de outubro, em que o esquerdista Morales chegou a ser proclamado vencedor em primeiro turno, seguia causando confrontos entre seus seguidores e os adversários, que denunciaram fraude. Oficialmente, o governo provisório reconhece cinco mortes nos conflitos, mas a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA), contabiliza 23 vítimas.

A renúncia de Áñez foi pedida na noite de sábado pelos sindicatos de cocaleiros (cultivadores da folha de coca) do Chapare, região próxima a Cochabamba e berço político de Morales, o primeiro representante da maioria indígena a governar a Bolívia. Além de exigirem a saída da presidente interina até a noite de hoje, os cocaleiros pressionam o Legislativo para que aprove uma lei determinando a convocação de novas eleições nacionais no prazo de 90 dias.

A ofensiva dos partidários de Morales na região central teve eco em outro reduto de seu partido, o Movimento ao Socialismo (MAS). Uma associação de moradores de El Alto, cidade de maioria indígena nas montanhas que cercam La Paz, aprovou a imposição de um cerco à capital para forçar a renúncia da presidente interina, cuja nomeação classificam como ilegal. Jeanine Áñez era a segunda vice-presidente do Senado e terceira na linha de sucessão do presidente, depois do vice e do presidente do Senado — que renunciaram em sequência ao presidente, sob pressão dos comandantes militares, e, como Morales, tomaram o rumo do exílio no México.

Paralelamente, legisladores do MAS, que detém maioria no Congresso bicameral, convocaram para hoje uma reunião com as bancadas minoritárias. A ideia, segundo a deputada Betty Yañíquez, é “debater a conjuntura política”, na perspectiva de “pacificar o país”. “O MAS quer trabalhar em harmonia (com as demais forças políticas)”, sustentou a congressista.

“Licença para matar”

O ministro de Governo, Arturo Murillo, rebateu ontem as acusações de uso abusivo da força contra os partidários de Morales, levantadas pelo enviado especial das Nações Unidas ao país, Jean Arnault, e corroboradas depois pela CIDH. Depois de sugerir que os próprios camponeses de Chapare teriam atirado uns contra os outros, “para produzir vítimas e acusar o governo”, Murillo saiu em defesa de um decreto datado de quinta-feira, mas divulgado apenas no fim de semana, para eximir as Forças Armadas de responsabilidade pelas vítimas que causarem em ações nas quais tenham sido empregadas para “preservar a ordem pública”.

No Twitter, o organismo de direitos humanos da OEA alegou que o decreto “ignora os parâmetros internacionais e estimula a repressão violenta”. Murillo defendeu a medida com base no argumento de que, desde a emissão do decreto, “os conflitos perderam 50% da intensidade”. O ministro da Presidência, Jerjes Justiniano, rebateu a acusação da CIDH de que o decreto dá cobertura aos militares para promover a execução de opositores do governo interino. “Não é uma licença para matar”, afirmou Justiniano. “Apenas define a tarefa das Forças Armadas com uma base constitucional de garantir a estabilidade do país.”