Correio Braziliense, n. 20712, 06/02/2020. Política, p. 2

Governadores criticam desafio de fim do ICMS

Rosana Hessel
Ingrid Soares
Marina Barbosa


 

O presidente Jair Bolsonaro fez uma provocação aos governadores para que eles acabem com o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) dos combustíveis. O chefe do Executivo disse que, se o fizerem, a União seguirá o exemplo. “Eu zero federal, se eles zerarem o ICMS. Está feito o desafio aqui, agora. Eu zero o federal hoje, eles zeram o ICMS. Se topar, eu aceito”, ressaltou o presidente, ontem, em entrevista a jornalistas.

Desde domingo, o presidente anda irritado porque, apesar de o dólar — um dos componentes do custo dos combustíveis — estar nas alturas, a Petrobras fez três reduções do preço da gasolina, e o consumidor não viu o benefício nas bombas. Em sua conta na rede social, ele defendeu um imposto fixo sobre os combustíveis e apontou que os estados não admitem “perder receita”, mesmo com a queda dos valores cobrados nas refinarias.

Como resposta, Bolsonaro foi chamado de populista por governadores e técnicos, pois nem estados nem a União possuem espaço fiscal para abrirem mão de uma receita bilionária. As contas públicas do governo federal estão no vermelho desde 2014 e, como a meta fiscal deste ano é de um rombo de até R$ 124 bilhões, não será fácil para ele renunciar a um volume de quase R$ 30 bilhões, que equivale a um Bolsa Família. Em coro, os governadores lembraram que mais de 60% da carga tributária são de tributos federais e, portanto, o peso dos impostos estaduais é bem menor do que a carga tributária total, de quase 34% do Produto Interno Bruto (PIB).

O governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), não teve meias-palavras. “O problema é que os governos, não só o do Bolsonaro, mas dos ex-presidentes da República já zeraram os cofres dos estados. Todos os estados da Federação e o Distrito Federal estão quebrados, e ele tem consciência disso”, rebateu. “Eu preferia tratar esse assunto com quem entende de economia, que é o ministro Paulo Guedes. Não com o presidente Bolsonaro, que não entende.”

De acordo com Ibaneis, o DF não dispõe de recursos suficientes para adotar uma medida assim. “Eu não tenho fábrica de dinheiro. Quem tem a máquina de dinheiro é ele. É matemática, não tem o que ser feito. Não adianta a gente querer fazer política quando a situação é matemática.”

Outro que criticou foi o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB). “Se é para construir soluções, vamos buscar um fórum adequado e não simplesmente ficar lançando desafios”, ressaltou. Ele lembrou que os impactos no orçamento de uma redução do ICMS sobre combustíveis são diferentes entre estados e União, mas que os chefes de Executivos estaduais estão abertos ao debate. “Não vamos resolver o assunto dando declarações em redes sociais ou à imprensa. Vamos debater corretamente e construir condições para uma redução de imposto que atinja realmente o consumidor.”

“Bravata”

Para o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), Bolsonaro está tomando atitudes populistas e sem responsabilidade. “Na base da bravata. A bravata me lembra populismo, populismo me lembra algo ruim para o Brasil”, disse o tucano, após encontro com senadores. Mais tarde, antes de reunião no Ministério da Economia, ele voltou a criticar a proposta de Bolsonaro. “É preciso que o presidente tenha responsabilidade e ocupe de maneira correta o cargo para o qual foi eleito. Não se faz gestão por WhatsApp nem por grupos digitais, se faz gestão com diálogo, entendimento. Convide os governadores para discutirem e debaterem o assunto”, disparou.

Renato Casagrande (PSB), governador do Espírito Santo, lembrou que a maioria dos estados não tem condições de dispensar a receita e também defendeu um debate mais “equilibrado”, “com responsabilidade com as contas públicas”. “O governo federal tem o protagonismo, porque tem a política de controle de preços, e a Petrobras é uma empresa pública. Ele arrecada mais de 60% dos tributos e deve chamar a área técnica para termos uma proposta consistente para a sociedade brasileira”, afirmou. “Por isso, não podemos fazer um debate superficial e pela rede social, mas sentados à mesa, com técnicos, para vermos as condições fiscais.”

Surreal

A assessoria do governo do Rio de Janeiro informou que o estado é contra a sugestão do presidente, porque “traria perda de arrecadação aos cofres fluminenses”. O tributo representa 13% da arrecadação do ente federativo, que está em recuperação fiscal. “O Estado do Rio defende que em momentos de crise sazonal, como ocorreu recentemente no Oriente Médio, os contribuintes não sejam prejudicados devido a altas momentâneas em postos”, disse, em nota.

O presidente da Associação dos Agentes Fiscais de Rendas do Estado de São Paulo (Afresp), Rodrigo Spada, também reprovou a proposta do presidente e destacou que os estados tivessem de abrir mão de 15% de sua arrecadação total, isso representaria um deficit “de mais de R$ 87 bilhões por ano”. “A proposta é populista, pois não é passível de ser executada pelos governadores, não traz nenhum benefício para o Brasil e não considera a realidade econômica do país”, frisou, em nota. “A função de um presidente é convergir esforços para incentivar o crescimento do país, e não o contrário.”

No dia 11, haverá um fórum de governadores em Brasília. Na pauta, a proposta dos entes federativos sobre reforma tributária e o ICMS sobre combustíveis. (Colaborou Agatha Gonzaga)

Perda bilionária para cofres da União

O ministro da Economia, Paulo Guedes, já se reuniu com o presidente Jair Bolsonaro, depois que o mandatário sugeriu zerar os impostos dos combustíveis. Porém, não quis falar sobre essa possibilidade. O secretário especial da Fazenda, Waldery Rodrigues, também preferiu não comentar. Afinal, o desafio lançado pelo chefe do Executivo pode até reduzir o preço final dos produtos, mas vai custar caro para o governo.

De acordo com a Receita Federal, a União arrecadou R$ 27,4 bilhões com os impostos federais que incidem sobre os combustíveis só em 2019. Desse montante, R$ 24,6 bilhões partiram do PIS/Cofins, que representa R$ 0,7925 do litro da gasolina e R$ 0,3515 do litro do diesel. E R$ 2,8 bilhões vieram da Cide-Combustíveis, que representa R$ 0,10 do litro da gasolina, segundo a Federação Nacional do Comércio de Combustíveis e de Lubrificantes (Fecombustíveis).

Apesar de ainda não terem o total da arrecadação do ICMS dos combustíveis em 2019, os estados também já avisaram que essa é uma receita importante demais para ser renunciada por eles. Segundo o Comitê dos Secretários de Fazenda dos Estados e Distrito Federal (Comsefaz), responde por 20% de tudo o que os estados arrecadam com o ICMS — tributo que, por sinal, representa a principal fonte de receita de boa parte das unidades federativas. Em 2018, quando a arrecadação federal de combustíveis foi de cerca de R$ 32 bilhões, por exemplo, o ICMS rendeu quase R$ 56 bilhões. Afinal, como lembra a Fecombustíveis, essa é uma alíquota representativa: vai de 25% a 34%, de acordo com o estado.

Por conta disso, especialistas em contas públicas acreditam que o silêncio de Guedes é sintomático: renunciar a toda essa receita pode atrapalhar os planos de ajuste fiscal que tentam acabar com o deficit das contas públicas, sobretudo neste momento em que a arrecadação está só começando a se recuperar. “Não dá para abrir mão de uma receita assim de uma hora para outra. Desorganizaria as contas públicas da União, dos estados e dos municípios, porque geraria um rombo que não tem como preencher”, afirmou o economista e ex-deputado Luiz Carlos Hauly, autor de uma das propostas de reforma tributária que tramitam no Congresso.

Os especialistas acreditam, então, que a redução dos impostos sobre os combustíveis dificilmente viria sozinha. “A Lei de Responsabilidade Fiscal não permite abrir mão de uma receita sem o equivalente corte de despesa ou alternativa de recurso. Então, teria de envolver um corte orçamentário como o Brasil nunca viu”, alertou Hauly. “Ou poderiam criar um imposto e aumentar a alíquota de outro, além de emitir mais dívidas”, acrescentou o professor de economia da Universidade de Brasília (UnB) Newton Marques. Ele disse que o impacto para os estados e municípios seria muito maior, já que os entes federados não têm a mesma margem de manobra da União.

Os dois lembraram, contudo, que essa proposta de zerar os impostos dos combustíveis não será executada se não tiver o apoio dos estados e dos municípios, como já indicaram os governadores. Afinal, precisaria ser aprovada pelo Congresso. “Politicamente, não dá para fazer isso. Quais deputados e senadores iam aprovar isso em um ano eleitoral?”, questionou Marques, dizendo que a fala de Bolsonaro pode ser, então, simplesmente eleitoral.

A melhor saída, apontada pelos especialistas, para essa crise dos combustíveis é, então, a reforma tributária. Afinal, as propostas que estão no Congresso — e só aguardam as proposições do governo federal para avançarem — preveem a criação de um imposto único que englobaria tanto o ICMS quanto o PIS/Cofins e a Cide e ainda reduziria a carga tributária dos combustíveis. “Uma das opções estudadas é uma alíquota de 25% para todos os estados, cuja base de cálculo seria o preço das refinarias, que é mais baixo, e não o preço das bombas dos postos”, afirmou Paulo Tavares, presidente do Sindicato do Comércio Varejista de Combustíveis e Lubrificantes do Distrito Federal (Sindicombustíveis-DF). (MB)