O Globo, n. 31548, 22/12/2019. País, p. 12

‘Sócio laranja’ em loja de doces azedou relação com Witzel
Bernardo Mello
Juliana Castro


Enquanto a possível atuação como “sócio laranja” do senador Flávio Bolsonaro (sem partido-RJ) despertou o interesse do Ministério Público (MP-RJ), Alexandre Santini já vinha, nos últimos meses, reiterando suas demonstrações de fidelidade ao clã Bolsonaro. Em setembro, três meses antes de ser alvo de busca e apreensão do MP, Santini chamou atenção durante o Rock in Rio ao tentar acessar o camarote onde estava o governador do Rio, Wilson Witzel, vestindo uma camisa com o nome do presidente.

Santini já havia posado sorridente ao lado de Witzel no camarote do governador na Marquês de Sapucaí, durante o carnaval. Após a relação entre Witzel e o presidente Jair Bolsonaro azedar, o sócio de Flávio na Bolsotini Chocolates e Café passou a disparar petardos contra o governador em suas redes sociais. Em uma dessas ocasiões, quando levantou suspeitas sobre um almoço entre o governador de São Paulo, João Doria, e Witzel em 2018, foi confrontado pelo vice-governador Cláudio Castro no WhatsApp, que o acusou de estar disparando “fake news”. O sócio de Flávio publicou o diálogo nas redes e sugeriu que o vice de Witzel havia feito ameaças.

— Ele deu a entender que foi barrado no camarote porque estava com a camisa do Bolsonaro. Na verdade, ele só estava sem a pulseira de acesso — explicou um interlocutor de Witzel. Em um de seus perfis em redes sociais, a descrição de Santini carrega uma espécie de ensinamento sobre “três coisas que você precisa manter em segredo: seu faturamento, sua vida amorosa, seus próximos passos”. Para o MP, a participação de Santini na loja de chocolates aberta com Flávio Bolsonaro, em 2015, poderia ter o objetivo de “simular que os custos da operação teriam sido divididos igualmente entre os sócios da Bolsotini”. A aquisição da loja custou cerca de R$ 1 milhão, segundo documentos levantados pelo MP. Santini é responsável por metade do capital social.

Divisão dos lucros

No entanto, a investigação aponta que Flávio e sua mulher, Fernanda Bolsonaro, arcaram “com a integralidade ou pelo menos a maior parte das despesas”, embora não tivessem lastro para tanto. A compensação, ainda segundo o MP, veio nos três anos iniciais de atividade da loja, período em que Flávio recolheu lucros quase R$ 500 mil acima do valor angariado por seu sócio.

Em vídeo publicado na quinta-feira, um dia após uma equipe do MP cumprir mandado de busca e apreensão na Bolsotini, Flávio Bolsonaro argumentou que retirava mais dinheiro da loja de chocolates porque “leva mais público ao local” do que o sócio. Segundo o MP, embora figurasse como sócio responsável por metade da loja de chocolates, Santini não efetuou nenhum aporte de recursos na Bolsotini desde a abertura da empresa até dezembro de 2018.

“Portanto, a figura do sócio que de fato não arca com recursos próprios para a capitalização da sociedade levanta suspeitas de que Alexandre Santini possa ter atuado como ‘laranja’ do casal Bolsonaro na aquisição” da loja de chocolates, “a fim de camuflar a origem dos recursos investidos no empreendimento”, segundo o MP.

A cerimônia de inauguração da loja de chocolates reuniu nomes como Fabrício Queiroz, à época um ilustre desconhecido assessor de Flávio, do então deputado federal Jair Bolsonaro, passando por figuras como o ex-jogador Bebeto e o apresentador Wagner Montes, ambos colegas de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). Uma das personalidades no evento, o ex-treinador de futebol Carlos Alberto Parreira, compareceu como convidado de Santini. Parreira havia se tornado sócio de Santini em uma exportadora, em 2012. Apresentados por um conhecido em comum, ambos embarcaram no negócio desenvolvido pela então mulher de Santini, Michele Fernandes — descrita por Parreira como a pessoa com “know how” do assunto. Alguns meses após a inauguração da loja de chocolates, no entanto, o casal

Santini e Michele pulou fora da sociedade com Parreira. — Já tinham se passado dois anos, uma empresa de exportação leva tempo para amadurecer no mercado. Então eles fizeram uma reunião e quiseram sair da sociedade. Comprei a parte deles com meu genro, hoje até que está indo bem — lembrou o ex-treinador. Herdeiro de uma família de ascendência italiana do interior de São Paulo, Santini costumava publicar nas redes fotos a bordo de itens de luxo, como jatinho, iate, helicóptero e carro importado, antes da guinada política no mundo virtual.

O suposto “sócio laranja” de Flávio Bolsonaro também aparece sem camisa em algumas publicações, exibindo um físico musculoso cultivado na academia. Segundo Parreira, seu exsócio, o pai de Santini trabalhou na empreiteira Odebrecht. O próprio Santini já teve um endereço de e-mail no domínio corporativo da Odebrecht. Procurado pelo GLOBO para se manifestar, o sócio foi sucinto ao telefone.

— Não tenho interesse. A reportagem do GLOBO também enviou mensagens, mas não obteve retorno.

A importância da loja de chocolates

> Recursos duvidosos

O MP do Rio detectou uma incompatibilidade entre a renda de Flávio Bolsonaro e de sua mulher, Fernanda, e os investimentos que eles fizeram para abrir a franquia em 2015. O MP também notou que Fernanda, mesmo sem integrar a empresa, cobriu parte da cota do marido e toda a cota de seu sócio, Alexandre Santini.

> Laranja

A divergência dos valores recolhidos pelos sócios, assim como a falta de investimento de Alexandre, levaram o MP a suspeitar que Flávio tenha usado Santini como laranja para ocultar a origem dos recursos injetados na loja. Em três anos, o parlamentar lucrou R$ 978,2 mil e seu sócio R$ 506,8 mil. Flávio justifica que atraiu mais público do que Santini.

> Faturamento divergente Entre os indícios investigados pelos promotores, também estão os lucros da loja. Entre 2015 e 2018, houve uma diferença de 25% entre os créditos declarados na conta de empresa e o faturamento auditado pelo shopping em que ela está localizada. Para o MP, isso sugere que recursos ilícitos podem ter sido inseridos artificialmente no patrimônio.

> Vendas atípicas Amigo de Flávio, o policial militar Diego Sodré de Castro Ambrósio transferiu R$ 21,1 mil para a conta da loja nos últimos três anos, sempre entre novembro e janeiro. Ele e Flávio afirmam que os valores se referiam a compras de panetones. O MP crê que o policial poderia estar participando da lavagem de recursos.

MP: Flávio disse ter lucro 82% superior ao declarado

Além de receber quase o dobro dos lucros da Bolsotini Chocolates e Café em relação a seu sócio, o senador Flávio Bolsonaro (sem partido/RJ) declarou uma retirada de valores 82% acima do que a própria empresa relatou à Receita Federal, segundo investigação do Ministério Público do Rio. De acordo com o MP-RJ, Flávio disse ter retirado R$ 793,4 mil de receita nos três primeiros anos de atividade da loja de chocolates, inaugurada em 2015. Só que a própria Bolsotini informou, em declarações de informações socioeconômicas e fiscais (DEFIS) relativas ao Simples nacional, que Flávio obteve, na verdade, R$ 435,6 mil no período. Segundo o MP, a Bolsotini não apresentou declaração de Imposto de Renda na mesma época.

A investigação também aponta divergências nas retiradas de Alexandre Santini, responsável por metade da sociedade com Flávio Bolsonaro. De acordo com os documentos, Santini declarou lucros de R$ 288,9 mil, valor mais de R$ 24 mil abaixo da transferência que a Bolsotini informou à Receita Federal. Considerando os valores efetivamente retirados pelos dois sócios, o MP conclui que Flávio obteve quase R$ 500 mil a mais do que Santini nos três anos iniciais de atividade da loja.

O valor equivale à cota de participação que deveria ter sido paga por Santini na empresa. Por outro lado, o MP não identificou aportes do sócio de Flávio até o fim de 2018. Os investigadores citam a “inexplicável desproporção na distribuição de lucros” da Bolsotini, “associada à coincidência do valor da diferença paga” a Flávio Bolsonaro em relação a seu sócio, para reforçar a suspeita de que Santini “possa ter figurado inicialmente nos contratos como ‘laranja’”.

O MP aponta que o dinheiro da “rachadinha” — quando os funcionários são coagidos a devolver parte do salário ao parlamentar —foi lavado na loja de Flávio e em transação de imóveis. Ao todo, os promotores suspeitam que o filho “01” do presidente Jair Bolsonaro tenha injetado recursos ilícitos não declarados no total de R$ 2,27 milhões nesses dois meios. De acordo com o MP, a loja apresentou uma diferença de R$ 1,63 milhão entre o faturamento auditado pela administração do shopping e o valor efetivamente recebido nas contas bancárias entre 2015 e 2018.

Um aspecto inusitado na movimentação financeira da loja de chocolates chamou a atenção dos promotores: apesar de a Páscoa representar o pico de vendas do segmento, este aumento não refletiu nos depósitos em dinheiro na conta da empresa. Os registros indicam inclusive que, em outros meses, as quantias chegaram a ser maiores do que no período da Páscoa.