Correio Braziliense, n. 20653, 09/12/2019. Mundo, p. 12

Terra comprometida
Silvio Queiroz


Os 3 milhões de palestinos que vivem na Cisjordânia compartilham com os 9 milhões de israelenses a expectativa tensa pelo desfecho de mais uma etapa na crise política mais profunda e prolongada vivida pelo moderno Estado judeu desde sua fundação, em 1948. O país é governado interinamente pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyhu desde o início de abril, quando uma eleição antecipada terminou sem a formação de uma maioria na Knesset (parlamento) — resultado que se repetiu em setembro. No fim desta semana, esgota-se o prazo para que os deputados encontrem uma solução: caso contrário, os eleitores serão chamados novamente às urnas, pela terceira vez no intervalo de um ano.

Inédito para os israelenses, o cenário tem implicação direta para os palestinos, em especial desde os dias finais da última campanha eleitoral. Foi quando o direitista Netanyahu, no esforço final para desempatar a disputa com o líder da oposição de centro, Benny Gantz, prometeu tomar medidas, caso reeleito, para anexar o Vale do Jordão e a margem norte do Mar Morto, que correspondem a 30% da Cisjordânia e compreendem a maior parte da terra cultivável. As áreas visadas são adjacentes aos assentamentos onde se concentra uma parte dos cerca de 500 mil colonos israelenses que vivem no território.

A ideia ganhou contornos mais claros em outubro e setembro. Primeiro, foi transformada em projeto de lei apresentado pelo Likud, o partido de Netanyahu, que se dispõe a colocá-lo prontamente em vigor, uma vez aprovado. Em seguida, veio o apoio externo indispensável para fazer frente a condenação praticamente unânime, começando pelas Nações Unidas. Rompendo com a política seguida há décadas por governos de ambos os partidos americanos, o presidente Donald Trump decidiu não mais considerar contrária ao direito internacional a colonização israelense na Cisjordânia, ocupada na guerra de 1967.

Do ponto de vista dos palestinos, a anexação das áreas abrangidas pelo plano tornaria inviável, em termos econômicos e mesmo práticos, a instalação de um Estado soberano. Desde os Acordos de Oslo, firmados em 1993, a Cisjordânia e a Faixa de Gaza são gvernadas em regime de autonomia limitada pela Autoridade Palestina (AP), como parte de um processo delineado para conduzir a uma Palestina independente, convivendo em fronteiras reconhecidas com o vizinho israelense.

“Estamos monitorando de perto as ações” de Netanyahu, comentou o presidente da AP, Mahmud Abbas. “Se ele realmente tomar uma medida como essa (a anexação), vamos nos dirigir à ONU e ao Tribunal Penal Internacional”, avisou. “E vamos, de maneira definitiva e irrevogável, romper todos os laços com Israel.” Abbas não deixou passar em branco, igualmente, a guinada diplomática anunciada por Washington. “A liderança palestina não pensa em ficar indiferente a isso. Comecei consultas com as diferentes força políticas a respeito dos passos que poderemos dar, e estamos pontos, inclusive, a eventualmente romper completamente as relações com os EUA.”

Espelho

Se Israel vive um período de impasse e indefinição política, a situação não é muito diferente no lado oposto. Abbas sucedeu o primeiro presidente e patriarca da causa palestina, Yasser Arafat, morto em novembro de 2004. Despido do carisma do antecessor, exerce uma liderança permanentemente contestada, em especial pelo movimento islâmico Hamas, que desde 2007 controla na prática a Faixa de Gaza — e já se envolveu em duas breves guerras com Israel. Desde 2009, o mandato de Abbas na presidência da AP foi prorrogado indefinidamente. Seguidas tentativas de convocar eleições para renovar o Executivo e o Legislativo do governo autônomo foram canceladas. A perda de 30% da Cisjordânia pode decretar o fim da carreira política de Abbas, sem que alguma nova liderança se projete.

No campo israelense, a semana começa com a os ventos soprando no rumo de uma nova eleição, depois de mais uma tentativa frustrada de Netanyahu e Gantz para compor um governo de “união nacional”, com maioria parlamentar sólida. Em ambas as possibilidades, no entanto, a anexação da Cisjordânia se insinua no horizonte como risco palpável, e a ampliação dos assentamentos como realidade tangível. O governo autorizou a construção de mais moradias para colonos na cidade de Hebron, foco permanente de tensão e confrontos. E, se o premiê interino já tem nesse um lema de campanha, o principal rival parece tomar o mesmo rumo. “Existe uma importante necessidade de fortalecer os assentamentos e garantir a sua proteção”, afirmou Gantz, que jamais se pronunciou contra o projeto de anexação. “É por isso que precisamos de um governo forte.”

Frase

“Se Netanyahu realmente tomar uma medida como essa (a anexação), (…) vamos, de maneira definitiva e irrevogável, romper todos os laços com Israel”

Mahmud Abbas, presidente da Autoridade Palestina

Um século de conflito

Movimento sionista

Reunido pela primeira vez em 1897, na Europa , o Congresso Sionista Mundial decide, sob a liderança de Theodor Herzl (1), lançar o movimento pelo retorno dos judeus ao berço histórico, na época uma província do Império Otomano (turco). Embora a região fosse habitada pela população árabe palestina, a campanha adota o slogan “uma terra sem povo para um povo sem terra”.

Acordo Sykes-Picot

Enquanto combate a Turquia na 1ª Guerra Mundial e apoia o levante nacionalista árabe, o Reino Unido negocia secretamente com a França, em 1916, um acordo para a partilha futura das províncias otomanas em áreas de influência. O documento leva o nome dos diplomatas Mark Sykes e François Georges-Picot. Após a vitória, em 1918, e o desmenbramento do império turco, a Liga Nações esatebelece, em 1922, proterorados a cargo das potências no Oriente Médio — entre eles, o Mandato Britânico da Palestina.

Declaração de Balfour

Em novembro de 1917, o chanceler britânico, Arthur James Balfour, envia ao barão Rotschild, líder da comunidade judaica e ligado ao movimento sionista, uma carta na qual manifesta “a simpatia do governo de Sua Majestade (…) ao estabelecimento de um lar nacional para o povo judeu” na Palestina. Sob mandato britânico, a região assiste ao crescimento progressivo da imigração judaica.

Holocausto

A perseguição antissemita sob o nazismo, na Alemanha, e o fascismo, na Itália, recrudesce com o início da Segunda Guerra Mundial, em 1939, e a ocupação de praticamente toda a Europa pelas forças de Adolf Hitler. Depois de confinar os judeus em campos de concentração (2), o führer nazista adota a “solução final”, que resulta no extermínio de 6 milhões. Os sobreviventes migram em massa para a Palestina, onde recrudescem as disputas com os árabes e o combate ao domínio britânico.

Partilha da ONU

Em 29 de novembro de 1947, sob a presiência do chanceler brasileiro, Osvaldo Aranha (3), a recém-fundada Organização das Nações Unidas (ONU) aprova um plano de partilha da Palestina britânica, que prevê o estabelecimento de um Estado árabe e um judaico. Jerusalém, sagrada para judeus, cristãos e muçulmanos, foi colocada sob status internacional. A proposta é aceita pelos sionistas, mas rejeitada pelos líderes dos novos Estados árabes, vários deles monarcas, que declaram guerra.

Fundação de Israel

Em 14 de maio de 1948, quando é oficialmente proclamado o moderno Estado de Israel, sob a liderança do primeiro-ministro David Ben-Gurion (4). A data é lembrada até hoje pelos árabes palestinos como An Nakba (“catástrofe”). Reconhecido prontamente por Estados Unidos e União Soviética, as duas potências que emergiram da 2ª Guerra, Israel vence o conflito e controla 75% da Palestina britânica, incluindo a metade ocidental de Jerusalém. O setor oriental, de maioria árabe, fica sob tutela da atual Jordânia.

Guerra dos Seis Dias

Em 5 de junho de 1967, Israel surpreende com um ataque preventivo as forças de Egito, Síria, Jordânia e Iraque, que preparavam um ataque conjunto ao Estado judeu. O resultado é fulminante e, em 10 de julho, as forças israelenses conquistam Jerusalém Oriental e o restante da Palestina britânica, que corresponde aos territórios atuais da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Ocupam também a Península do Sinai (Egito) e as Colinas de Golã. Em 1973, os exércitos árabes lançam uma ofensiva militar no feriado judaico do Yom Kippur, mas são repelidos. Israel anexa depois Jerusalém e o Golã. O Sinai é devolvido ao Egito em 1979, nos marcos do acordo de paz firmado no ano anterior em Camp David (EUA).

Arafat e a OLP

As derrotas de 1948 e 1967 minam as lideranças árabes nacionalistas, em especial o presidente egípcio, Gamal Abdel Nasser, padrinho político da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), fundada no Cairo em 1964. Fortalecido pela resistência aos israleneses nos campos de refugiados da Jordânia, o líder do grupo guerrilheiro Fatah, Yasser Arafat (5), assume em 1969 o comando da OLP e a transforma em uma espécie de Estado no exílio. Nas três décadas seguintes, o rosto de Arafat será a imagem internacional da causa palestina.

Intifada

Depois de expulsa da Jordânia, em 1970, e do Líbano, em 1982, a OLP é obrigada a instalar seu quartel-general na Tunísia e perde progressivamente influência sobre os palestinos que vivem na Cisjordânia e Gaza, sob ocupação e colonização israelense. Em dezembro de 1987, eles iniciam a Intifada, um levante que se estenderá por dois anos e terá papel decisivo na passagem a uma nova etapa do conflito.

Acordos de Oslo

Em 1992, ainda sob o impacto da Intifada, o Partido Trabalhista retorna ao poder com a proposta de negociar com a OLP um acordo de paz. A fórmula, negociada secretamente em Oslo, prevê a transição do regime de ocupação para um governo autônomo, a Autoridade Palestina (AP), com jurisdição na Cisjordânia e em Gaza e presidida inicialmente pelo líder da OLP. O estatuto definitivo de Jerusalém, cujo setor oriental é pretendido como capital de um futuro Estado palestino, é colocado entre os pontos finais do processo. Os Acordos de Oslo, como se tornam conhecidos, são firmados em Camp David, sob patrocínio do presidente Bill Clinton, por Arafat e pelo premiê israelense Yitzhak Rabin. Os dois, mais o chanceler Shimon Peres, dividem o Prêmio Nobel da Paz.

Era Netanyahu

A implantação do processo de Oslo avança até o fim de 1995, quando um extremista judeu assassina o premiê Yitzhak Rabin. No ano seguinte, Peres lidera os trabalhistas nas eleições, mas é derrotado pelo direitista Benjamin Netanyahu (6), adversário dos acordos. Em dois períodos de governo (o primeiro em 1996-99 e o segundo iniciado em 2009), Bibi, como é chamado, faz do combate ao terrorismo dos movimentos islâmicos Hamas e Jihad o foco da política de Israel frente aos palestinos. Com a morte de Arafat, em 2004, a AP passa a ser presidida por Mahmud Abbas, também do Fatah, mas despido do carisma do patriarca. As negociações diretas entre Israel e palestinos estão praticamente congeladas nos últimos 10 anos.