Correio Braziliense, n.20562, 09/09/2019. Mundo. p. 12

Líderes em apuros

Silvio Queiroz


O desfecho da novela do Brexit, um drama com os contornos dramáticos do teatro de William Shakespeare, parece ainda algo distante e totalmente imprevisível. Até 31 de outubro, dia por ora definido para que se separe da União Europeia (UE), o Reino Unido pode até passar por uma nova eleição — assim como pode adiar uma vez mais o “divórcio”, ir embora amigavelmente ou simplesmente bater a porta na saída do bloco. Entre as incertezas, porém, uma projeção parece segura: tempos difíceis aguardam os dois grandes partidos tradicionais da democracia parlamentar mais antiga. Amanhã, salvo nova reviravolta, o parlamento entra em recesso forçado, para voltar a duas semanas da data fatal.

Para o Partido Conservador, que governa desde 2010, o enredo do rompimento com o bloco continental já se apresenta como um divisor de águas. Nos três anos desde o referendo que aprovou o Brexit, os tories se dividiram irremediavelmente, a ponto de o atual primeiro-ministro, Boris Johnson, ter desligado da bancada 21 deputados rebeldes. Com o governo em minoria parlamentar, nem por isso o vento empurra o barco do Partido Trabalhista, o principal da oposição. Seu líder, Jeremy Corbyn, vinha martelando incessantemente a tecla de antecipar as eleições. Agora, porém, se vê na posição de rejeitar a convocação tentada por Johnson, uma manobra de risco com a qual o premiê tenta virar o jogo desfavorável na Câmara dos Comuns.

Mutação

“Tristemente, o processo do Brexit ajudou a transformar um partido outrora grande em algo mais parecido com uma facção estreita, onde o ‘conservadorismo’ de um filiado é medido pela disposição a deixar a UE sem os mínimos cuidados”, lamenta o deputado Phillip Lee. Na quarta-feira, ele causou sensação quando se levantou da bancada governista, cruzou o plenário e se juntou à oposição, sob aplausos. No mesmo dia, com pouco mais de um mês de mandato, Johnson foi derrotado duas vezes: a Câmara aprovou uma lei que o obriga a pedir adiamento do Brexit, caso não feche acordo com Bruxelas até 19 de outubro, e rejeitou sua proposta de convocar eleições para 15 de outubro.

“Alguma coisa do porte de um levante revolucionário está convulsionando o Partido Conservador”, afirma, em artigo para o jornal The Guardian, o comentarista Jonathan Freedland. Analisando um expurgo que teve entre as vítimas dois ex-ministros das Finanças e um candidato à liderança da legenda, ele resume a situação como “um acontecimento épico”: “Os tories estão sendo remodelados por Boris Johnson no rumo de um partido nacionalista e populista de extrema-direita”.

Dilema

É nesse perfil, assentado na promessa de um Brexit sem falta em 31 de outubro, ainda que seja “na marra”, que o premiê aposta para sair vitorioso em uma eleição antecipada. Seu principal estrategista, David Cummings, joga com a ideia de responsabilizar a oposição pelo impasse com a UE, e assim conquistar cadeiras dos trabalhistas em regiões industriais que votaram em peso pela saída do bloco. Em contrapartida, porém, o Partido Conservador corre o risco de sofrer um colapso na Escócia, majoritariamente anti-Brexit, e perder ainda mais votos para os nacionalistas locais, que são pró-UE.

Se resta consolo para os tories, é a constatação de que um dilema semelhante, no melhor estilo shakespereano, aflige Jeremy Corbyn, que chegou à liderança do Partido Trabalhista cultivando a imagem de um esquerdista dos tempos “heroicos” da legenda. Até julho, quando o atual premiê assumiu a liderança dos tories, eram os trabalhistas que lideravam as pesquisas de opinião. A dinâmica do Brexit, porém, empurrou Corbyn a uma aliança com os nacionalistas escoceses e os liberal-democratas, ambos defensores da permanência do país na UE.

Não por acaso, Johnson escolheu um discurso em Yorkshire, base operária trabalhista no norte da Inglaterra, para acusar o rival de “fugir das urnas” e “protelar o Brexit”. “Corbyn parece contar com a variante de garantir com os aliados a convocação de eleições apenas depois de vencido o prazo (para a saída da UE)”, analisa o jornal The Mirror. “Nessa situação, seria o premiê quem teria de fazer campanha explicando por que foi incapaz de cumprir a promessa de entregar o Brexit em 31 de outubro.”

Frase

“O processo do Brexit ajudou a transformar um partido outrora grande em algo mais parecido com uma facção estreita, onde o ‘conservadorismo’ de um filiado é medido pela disposição a deixar a UE sem os mínimos cuidados”

Phillip Lee, deputado que deixou o Partido Conservador

Maio de 2015

Cameron comanda os conservadores na reconquista da maioria e parte para o segundo mandato como primeiro-ministro à frente de um governo “puro-sangue”. Os liberal-democratas perdem muitas cadeiras no parlamento e deixam de ser o fiel da balança.

Junho de 2016

Em resposta a uma petição aprovada pelo próprio partido, Cameron convoca um referendo sobre a permanência do país na União Europeia (UE). Os conservadores vão às urnas divididos. O premiê e seus aliados defendem a manutenção do status de país-membro, ao lado dos trabalhistas e liberal-democratas. O carismático ex-prefeito de Londres Boris Johnson divide a liderança da campanha pela saída com o líder eurocético Nigel Farage. O Brexit é aprovado por 52% dos votantes.

Julho de 2016

Conforme anunciara após a derrota no referendo, Cameron renuncia à líderança do Partido Conservador e é sucedido por Theresa May, que fez campanha pela permanência na UE, como o antecessor, mas aceitou a missão de conduzir o “divórcio”. Os tories, como são chamados, voltam a se dividir entre os que defendem uma saída negociada com Bruxelas e os que, como Boris Johnson, admitem a ideia de um rompimento sem acordo.

Junho de 2017

Em eleição antecipada convocada pela premiê, o Partido Conservador perde cadeiras e deixa de ter maioria absoluta. Enfraquecida, em pleno processo de negociação do Brexit, May passa a governar com o apoio de um pequeno partido norte-irlandês e com maioria estreita. Os nacionalistas escoceses, os liberal-democratas e os verdes ampliam suas bancadas e aumentam a fragmentação do parlamento.

Maio de 2019

Depois de ver recusado três vezes pelo parlamento o texto do acordo negociado com a UE, e sob ataque crescente das facções conservadoras alinhadas com Boris Johnson, Theresa May renuncia à liderança do partido e abre novo capítulo da crise política. Os tories abrem o processo de escolha de novo líder (e primeiro-ministro). A oposição trabalhista, liderada por Jeremy Corbyn, pede a dissolução do governo e a convocação de eleições antecipadas, além de acenar como novo referendo sobre o Brexit. No fim do mês, nas eleições para o Parlamento Europeu, o Partido do Brexit, de Nigel Farage, sai em primeiro lugar, seguido pelos liberal-democratas. Os conservadores ficam com menos de 10% dos votos.

Julho de 2019

Boris Johnson vence a disputa interna pela sucessão de May e se torna premiê. Seu lema de campanha é manter a data de 31 de outubro para a efetivação do Brexit, com ou sem acordo com Bruxelas. Enfrenta resistência crescente no parlamento, onde a oposição se alia a dissidentes conservadores para barrar a opção de saída da UE sem acerto. No fim de agosto, o premiê surpreende com o anúncio de um recesso legislativo de cinco semanas, até as vésperas da data fixada para o “divórcio”. É derrotado na Câmara dos Comuns, desliga da bancada 21 dissidentes e perde maioria.