Correio Braziliense, n.20562, 09/09/2019. Cidades. p.17

Vítimas da covardia 

Cida Barbosa



Sem voz, sem defesa, sem acesso à plenitude dos seus direitos, a parcela da população que deveria ser mais cuidada e protegida sofre violações cotidianamente. Vulneráveis, crianças e adolescentes são alvo de todos os tipos de violência. Espancamentos, torturas, humilhações, abusos sexuais, negligência. Os sofrimentos são múltiplos, assim como os algozes, que vão da família ao Estado.

O drama de tantos meninos e meninas passa ao largo das preocupações de grande parte da sociedade. Não há uma mobilização maciça em prol da proteção deles. O poder público, por sua vez, falha na prevenção às violações e na redução de danos. Desrespeita a própria Constituição, que determina “absoluta prioridade” aos direitos de crianças, adolescentes e jovens, inclusive o de viverem a salvo de “exploração, violência, crueldade e opressão”.

Leis de proteção, por sinal, não faltam, mas a aplicação integral delas revela-se uma utopia. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) tem quase três décadas de existência e ainda enfrenta resistências para ser cumprido à risca. Mesma situação da Lei Menino Bernardo, incluída no ECA, que estabelece o direito de crianças e adolescentes serem cuidados e educados sem o uso de castigos físicos e de tratamento cruel.  Criada há cinco anos, quase não tem divulgação. Muita gente nem sabe que mesmo  agressões consideradas “leves” — como palmadas e beliscões — são proibidas.

Nessa rotina de negligenciar os mais indefesos, as violações se sucedem. Em 2017, das 307.367 vítimas de violência no Brasil, 126.230 foram crianças e adolescentes, ou 41%. Os dados são do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus), em seu levantamento mais recente. Em 2018, o Disque 100 — canal de denúncias do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos — registrou 152.178 tipos de violações contra esse público no país.

Os abusos físicos, psicológicos e sexuais sofridos por crianças e adolescentes, o impacto na vida deles e falhas na rede de proteção são temas da série Infância, um grito de socorro, que o Correio inicia hoje, com recorte para o DF. Nesta primeira reportagem, autoridades policiais, judiciais e especialistas abordam uma das práticas mais nefastas e arraigadas no país: as agressões físicas e psicológicas.

Em 2018, o Disque 100 registrou 1.147 denúncias de violência física contra meninos e meninas no DF. Os casos de violência psicológica foram 1.621. E os dados nem representam, de fato, a realidade, porque os abusos, muitas vezes, são praticados às escondidas, no seio da família. A subnotificação também costuma ser alimentada pelo silêncio de parentes, amigos, vizinhos. A banalização de agressões condena meninos e meninas a sofrerem calados, sem socorro.

Na Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), as ocorrências não param. Os agressores são, principalmente, do núcleo familiar — mãe, pai, avós, padrasto, madrasta. Um dos casos que chamaram a atenção dos agentes foi o de dois irmãos, de 4 e 5 anos, que chegaram ao local com as mãos inchadas e em carne viva. Lesões provocadas pela própria mãe. Ela esquentava uma colher no fogo e os fazia segurar. Aos policiais, disse que os castigava para discipliná-los, pois faziam muita bagunça.

“A gente vê coisas punks aqui de castigo físico. Há quem diga que é besteira, mas não é, é algo gravíssimo”, alerta a delegada-chefe da DPCA, Ana Cristina Melo Santiago. “Tanto que temos um setor só trabalhando com isso.” Ela se refere à Seção de Repressão às Infrações de Menor Potencial Ofensivo — como são considerados, na legislação, maus-tratos, lesões corporais e injúria, por exemplo.

Quem chefia a divisão é Andrea Boanova. De acordo com ela, agressores veem a violência como uma forma normal de correção. “Tive aqui o caso de uma mãe que agredia o filho. A gente foi buscá-la, ela foi presa, e falava: 'Vou fazer quantas vezes forem necessárias. O filho é meu, quem educa sou eu”, relata.

O drama é maior para as meninas, segundo Ana Cristina Santiago. “Muitas apanham porque não levaram o sapato do pai, não arrumaram a cama, não lavaram a louça. São garotas de 6, 7 anos.”

Fernanda Falcomer, chefe do Núcleo de Estudos, Prevenção e Atenção à Violência (Nepav), da Secretaria de Saúde, lembra que a prática está na nossa história. “A sociedade tende a fazer o discurso: 'Eu apanhei, mas virei gente de bem'. É aceito que se bata em criança.”

Memória

Maus-tratos e mortes

Em maio deste ano, duas atrocidades abalaram o DF. Uma delas foi o violento espancamento de quatro crianças, de 1, 3, 7 e 9 anos, em Planaltina de Goiás. A menina de 7 anos morreu. Os covardes foram a tia, 17, e o namorado dela, 19. O próprio casal contou à polícia que as agressões aos irmãos ocorriam com frequência. Dois dias depois, houve outra barbárie, desta vez em Samambaia. Rhuan Maycon, 9 anos, foi esfaqueado até a morte, enquanto dormia, pela mãe, Rosana Auri, e pela companheira dela, Kacyla Priscyla. As duas degolaram a criança ainda viva e esquartejaram o corpo. A investigação mostrou que o assassinato foi o ápice do horror que Rhuan enfrentava. Ele sofria constantes maus-tratos e teve o pênis decepado, numa cirurgia caseira, um ano antes da morte.