Correio Braziliense, n.20562, 09/09/2019. Cidades. p.18

Tormento dentro de casa

Cida Barbosa


O ambiente doméstico, que deveria ser de afeto, cuidado e proteção, comumente se transforma em local de tormento para meninos e meninas. Vistos como propriedades das famílias, e não sujeitos de direito — como pregam a Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) —, eles ficam à mercê da violência de pais ou responsáveis. Segundo o Disque 100, em 2018, mães foram apontadas como algozes em 1.472 registros, enquanto pais, por 746.

“Pessoas que deveriam cuidar de crianças e adolescentes são as que mais cometem violências contra eles. A maioria das agressões ocorrem na casa deles, ou seja, no local onde deveriam estar protegidos”, atesta Márcia Oliveira, coordenadora da Rede Não Bata, Eduque, movimento social apartidário, do Rio de Janeiro, que se baseia na Lei Menino Bernardo.

Segundo ela, as pessoas buscam as mais diversas desculpas para espancar crianças. “Há quem bata e justifique citando o uso da vara de que fala o Velho Testamento (da Bíblia). A gente tenta desmistificar isso, trazendo um novo olhar: de que a vara não é para açoitar é para conduzir”, conta.

Na opinião de Fernanda Falcomer, chefe do Núcleo de Estudos, Prevenção e Atenção à Violência (Nepav), da Secretaria de Saúde do DF, é complicado mudar a mentalidade de pais ou responsáveis, que, muitas vezes, foram criados apanhando e reproduzem a prática. Eles não percebem o impacto da agressão nos filhos nem sabem como criá-los com diálogo e respeito. “É um trabalho longo e difícil, porque há essa crença arraigada (de bater para educar). Já vi muita gente criticando a lei da palmada (Lei Menino Bernardo)”, diz.

Quem corrobora com essa percepção é Reginaldo Torres, supervisor da Seção de Atendimento à Situação de Risco da Vara da Infância e da Juventude do DF (Seasir/VIJ-DF). Há 15 anos lidando com vítimas e suas famílias, ele diz que, muitas vezes, agressores sofreram violações no passado e as estão replicando. “A gente tem dificuldade de dar o que não recebeu. Se eu não fui cuidado, se não fui amparado, tenho mais dificuldade de oferecer isso. E as situações de violência acontecem quando eu não reconheço o outro como um ser que precisa ser cuidado e protegido”, ressalta. “Se eu não entendo o outro como uma pessoa, posso chutar, xingar, fazer do corpo dele o que eu quiser, porque, para mim, é como um objeto. Eu vou coisificá-lo. E, na relação de adulto com criança, ocorre a transgressão do poder de cuidar, de educar.”

A delegada-chefe da DPCA, Ana Cristina Melo Santiago, ressalta a predominância da mentalidade adultocêntrica, ou seja, de ver crianças e adolescentes como seres menores. “É próprio da nossa sociedade olhar para esse sujeito de direitos e deveres e não vê-lo dessa forma. Tanto que, quando a gente conversa com uma criança ou um adolescente, qual é a primeira pergunta que faz? 'O que você vai ser quando crescer?' Ele não vai ser, ele já é, hoje”, frisa. “Por isso que essa questão de 'menor' foi tirada do Código, porque é uma expressão muito estigmatizada. Eu estou dizendo que há um ser menor? É muito ruim se referir a um 'menor'. Não. É uma criança, um adolescente, um sujeito de direito.”

Leslie de Carvalho, da Promotoria de Justiça Cível e de Defesa dos Direitos Individuais, Difusos e Coletivos da Infância e da Juventude, do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, defende punições mais duras para agressores. “Castigo físico deveria ser crime, deveria ser enquadrado na lei penal, mas, na prática, isso não acontece”, lamenta.

Depoimento

"As surras que eu levava do meu pai embriagado passaram a ser cada vez mais constantes. Eu fugia de casa quando meu pai me batia, porque eu apanhava sem motivo. Ele chegava bêbado, dizia coisas que um pai não deve falar para um filho e me batia. Então, eu fugia, passava dois, três meses na rua. Para me sustentar, pedia esmola, as pessoas me ajudavam. Em casa, eu sofria tanto que não acreditava que as coisas pudessem melhorar. Na rua, me sentia mais seguro do que em casa. (...) Como não aguentava mais os maus-tratos, as surras constantes  do meu pai, da minha tia, dos meus avós, aos 13, resolvi viver definitivamente nas ruas. Para sobreviver, vendia meu corpo em troca de comida ou de uma cama para dormir."

Genilson, 28 anos, em relato no livro Vira Vida, do programa do Sesi-Senai, que leva o mesmo nome. Ele teve a trajetória modificada pelo projeto