Título: ''A política econômica é uma tragédia''
Autor: Israel Tabak
Fonte: Jornal do Brasil, 06/02/2005, País / Entrevista, p. A3

Na última quinta-feira, o economista Reinaldo Gonçalves, professor titular da UFRJ, enviou uma carta ao diretório municipal do PT, pedindo formalmente o seu desligamento do partido. No papel, colada, a carteirinha de filiado, partida ao meio. Um forma de expressar toda a frustração e desencanto de um dos mais graduados quadros técnicos do partido e um dos principais formuladores do programa econômico do candidato Luiz Inácio Lula da Silva, em todas as campanhas à Presidência. Gonçalves é um dos 112 militantes que deixaram a legenda enquanto transcorria o Fórum Social Mundial, quando ficou escancarado o abismo entre uma parte expressiva da intelectualidade de esquerda e as diretrizes do atual governo. Muito mais do que a desilusão, o economista expressa indisfarçável preocupação com os rumos da política econômica, que considera ¿uma tragédia¿. Na sua visão, ao contrário do que ocorria nos tempos de Fernando Henrique Cardoso, o governo Lula não dispõe de formuladores e estrategistas para a área econômica. O arsenal de medidas se limitaria, na prática, a apenas duas providências: aumentar impostos para arrecadar mais e elevar a taxa de juros para conter a inflação. Gonçalves afirma que o governo, nos dois primeiros anos, teve a seu favor uma conjuntura internacional extremamente favorável. ¿ O país, no entanto, ficou muito mais vulnerável às turbulências externas ¿ alerta.

- Qual a principal razão da sua saída do partido?

- A distância entre o programa que ajudei a formular e o que vem sendo feito. O programa de governo do PT tem três diretrizes estratégicas: aprofundar a democracia, combater a exclusão social e, no plano econômico, reduzir a vulnerabilidade externa. Dois anos depois, podemos afirmar que estas diretrizes não estão sendo cumpridas.

- O que ocorreu?

- Aprofundar a democracia, por exemplo, significaria uma série de condutas e reformas que nos levassem a uma democracia de fato, e não apenas formal. Evitar as ''reforminhas'' que, historicamente, têm sempre a função de promover a conciliação com as oligarquias, evitando as transformações efetivas. O historiador José Honório Rodrigues diz que, no nosso processo político, as lideranças criativas, ao se defrontarem com obstáculos internos e restrições externas, acabam seguindo o que seria a ''linha da menor resistência''. Lula não fugiu a esse padrão.

- Ninguém desconfiou, no partido, de que isso poderia ocorrer?

- Muita gente, no partido, mesmo antes de 98, não via no núcleo dirigente a condição necessária para chegar ao governo federal e implementar um projeto efetivo de mudanças. Havia uma grande desconfiança, gerada pela própria conduta desse núcleo dirigente nos debates internos. Sentia-se muita ambiguidade.

- Dê um exemplo.

- Eu sentia ambiguidade com relação aos temas da Alca, da dívida externa, e do papel do Banco Central. Isso significava que as decisões seriam tomadas segundo as circunstâncias. Ou seja, havia ausência de diretrizes. O objetivo passou a ser, não a transformação, mas a chegada ao poder. E, se isso corresse, a diretriz seria, no primeiro ano, a governabilidade: não fazer marola, não ter turbulência. É a interpretação que muita gente fazia. Depois de garantida a governabilidade, iriam centralizar os esforços na reeleição. E é isso que está acontecendo.

- Quais as conseqüências desse processo?

- A consolidação de estruturas retrógradas e a quebra da esquerda brasileira. Racha-se também o movimento sindical e a sociedade civil organizada. Algumas ONGs vão ser cooptadas, outras continuarão iludidas até o fim do governo, enquanto muitas vão ficar perplexas, sem saber o que está acontecendo. A herança do Lula, nesse sentido, pode ser pior que a do Fernando Henrique. Além de todos os problemas econômicos e sociais, fica destroçada uma das alternativas viáveis. Como esse tipo de liderança, corremos o risco de gastar cartuchos à toa, queimando tudo o que vinha sendo montado há 25 anos.

- Mas, sem moderar programas e fazer alianças, o PT, certamente, não chegaria ao poder.

- Política é o exercício de negociação, mas não se pode negociar princípios e valores. Você vira mais um na salada geral que é a política brasileira, com esse vergonhoso troca-troca de partidos, por exemplo. Se você quer poder pelo poder, está resolvido o problema , mas se o poder é um meio para melhorar a sociedade, não se pode transigir. Na realidade, muita gente achava que não deveríamos disputar o poder em 2004 e sim nos preparar para o horizonte de 2010. Também penso desse modo. O partido não estava preparado para ser governo e, ao mesmo tempo, manter a sua identidade. Não havia maturidade e força política suficientes.

- O ministro Tarso Genro costuma dizer que seria um sério erro do partido embarcar num processo de ruptura com a sociedade constituída.

- Na realidade, não havia esse discurso de ruptura. Ninguém responsável, dentro do PT, conhecedor da história e da correlação de forças no país, faria esse discurso. O que se queria era, efetivamente, promover mudanças. A ruptura seria a negação do nosso próprio projeto de governo.

- A esquerda nunca foi boa de voto, nem chega facilmente às massas. Tem dificuldade de comunicação e perde terreno para o populismo, junto aos mais pobres.

- Isso faz parte da nossa formação política e reforça a idéia de se manter a identidade, a coerência. O que não se pode é responder com ambiguidade a esse tipo de cultura política. A população vai acabar concluindo que, de fato, todos os políticos são farinha do mesmo saco.

- Mas como chegar às massas?

- Isso é um processo. O que era o PT há 20 anos? Nada. Daqui a 10 anos poderia ser mais do que é hoje, com identidade , com coerência, projeto, firmeza e ganhando respeito da população. É um processo a ser construído. O que não deveria haver é a ânsia do poder a qualquer custo, o que significa demolir tudo o que foi feito, tijolo por tijolo. É a pusilanimidade vencendo a esperança.

- Na economia, Lula segue, de fato, a política de Fernando Henrique?

- Político geralmente não gosta de economia. Ninguém aprecia gerenciar passivos e há o problema da tecnicalidade. Como bom político, Fernando Henrique tinha um grupo de formulação estratégica. E era de primeiro nível. Não quero dizer com isso que a estratégia era correta. Mas havia essa visão. Havia rumo e prumo. Os economistas que exerciam as funções principais no governo eram excelentes. Tinham projeto e concepção estratégica. Quando surgia um problema econômico sério, o presidente os chamava, eles montavam o cenário e sugeriam políticas associadas, consistentes.

- E como é no atual governo?

- A política econômica, na minha avaliação, é uma tragédia, uma catástrofe. Os resultados são absolutamente medíocres. Você tem que descontar a conjuntura internacional extraordinariamente favorável dos últimos dois anos. Se a a conjuntura piorar, vai haver uma degringolada geral da economia brasileira.

- Lula, então, teve sorte...

- Esse é o ponto. E mesmo com uma conjuntura tão favorável foram executadas políticas macroeconômicas equivocadas e inconsistentes, como, por exemplo, nas áreas monetária e fiscal. Se permanecesse a equipe de Fernando Henrique, com essa conjuntura, o resultado seria muito melhor. Não há núcleo cleo de formulação de estratégia econômica dentro do governo Lula. Se a expectativa de inflação sobe, a taxa de juros sobe. Para melhorar a arrecadação, elevam os impostos. É só isso. Não tem mais nada. Para combater a inflação você tem uma tecnicalidade de política monetária muito mais robusta, consistente, com o uso de muitos outros instrumentos.

- Explique um destes instrumentos.

- Estabelece-se, por exemplo, uma meta de inflação. Se houver pressão inflacionária, usa-se a taxa de juros para ajustar as contas públicas, em vez de focar no combate à inflação. Em outras palavras: em vez de pagar R$ 125 bilhões de dívida, no ano, reduz-se a taxa de juros à metade. Sobram mais de R$ 60 bilhões, que é seis vezes e meia o nível de volume de investimentos do setor público no ano passado. Alguém objetará que haverá pressão inflacionária, pela demanda. Faz-se, então, o crédito seletivo. Com a redução da taxa, pode-se aumentar o depósito compulsório. Fazer com que os bancos tenham menos dinheiro para emprestar. Se isso acontece, a taxa de juros, na ponta, sobe, mas não a taxa básica. Eu estico a estrutura da taxa de juros para equilibrar as finanças públicas e sobrar dinheiro para investimentos.

- E como o senhor avalia a política econômica no contexto internacional?

- Estamos muito mais vulneráveis. O ''sucesso'' do governo Lula é o sucesso de quem exporta soja e frango. Em 1948, Raul Prebish já dizia que a América Latina não vai se desenvolver enquanto ficar concentrada na produção e exportação de matérias primas e produtos agrícolas. Agribusiness é a palavra moderna para a antiga plantation. Este governo está consolidando uma estrutura de produção retrógrada, sujeita a preços internacionais instáveis. O preço da soja, por exemplo, já está despencando. Temos uma brutal rivalidade internacional nessa área. E no nosso caso, há uma circunstância agravante. Boa parte da produção está nas mãos de estrangeiros. A receita da exportação vira remessa de lucros e dividendos. O dinheiro que fica aqui dentro é pouco.

- O governo costuma exibir números animadores...

- Tivemos um superávit comercial de US$ 60 bilhões em dois anos. Isso reduziu a dívida externa significativamente? Não. Após um esforço exportador brutal, nossa renda ficou comprimida e esse enorme superávit vazou, foi embora. Temos um dos níveis de reservas mais baixos do mundo, pouco mais de US$ 20 bilhões e estamos devendo dinheiro ao FMI até 2008. O país precisa reduzir a vulnerabilidade externa na área comercial, mudando o próprio padrão de comércio, com produtos mais capazes de resistir às mudanças na conjuntura internacional. Mas se fez justamente o contrário, ao se centrar a exportação nas commodities, que constituem hoje oito dos 10 principais produtos da nossa pauta de exportação.