Título: Onde ser mulher é um risco
Autor: Olivia Hirsch
Fonte: Jornal do Brasil, 06/02/2005, Internacional, p. A8

Preferência por bebês do sexo masculino leva governo de Nova Délhi a lançar campanha para salvar futuro

Mais de 70 milhões de bebês do sexo feminino podem morrer nas próximas duas décadas na Índia pelo simples fato de serem meninas. A questão é tão séria que há lugares em que os homens chegaram ao ponto de ''importar'' mulheres de outros estados para se casar. A prática de escolha do sexo - e a conseqüente preferência pelos meninos - alarmou o governo de Nova Délhi, que acabou de lançar uma intensa campanha para tratar do tema.

Nos moldes da indústria cinematográfica nacional, apelidada de Bollywood e mais bem-sucedida que a similar americana, uma minissérie de 13 capítulos já começou a ser exibida no país. O programa trata das leis que regem os exames de ultra-sonografia - o governo baniu o uso indiscriminado porque a popularização do teste fez com que aumentasse significativamente o número de abortos -, de questões de gênero, de pobreza, das leis contra a prática de pagamento de dote, da violência contra a mulher e dos infindáveis problemas que podem surgir pelo fato de elas estarem em número muito menor que os homens. O governo aposta na paixão dos indianos pelo cinema para tentar mudar a imagem de que as mulheres são um ''peso'' para a família.

- A cultura é formada por valores, que estão constantemente sendo negociados, tanto para sua manutenção como para sua transformação - explica o antropólogo Everardo Rocha, professor do departamento de Comunicação Social da PUC-Rio. - Para tentar tornar um valor hegemônico, como é o caso, a linha persuasiva é na maioria das vezes muito mais eficiente que a via legislativa.

Os motivos que levam alguns estados a ter 793 mulheres para cada mil homens, como é o caso de Punjab, no Norte, são muitos. Lá, diz-se que o feticídio de meninas é tão comum em algumas vilas que é mais fácil fazer um exame de ultra-sonografia do que obter água limpa.

- Entre outras razões, há a falta de acesso das mulheres à propriedade. Em vários lugares do país, apenas os varões têm direito a herdar a propriedade dos pais, as mulheres não. E, na hora do casamento, ainda é a família da noiva que tem que arcar com o dote - conta ao JB a indiana Radhika Balakrishna, pesquisadora do tema e professora da Faculdade Marymount, de Nova York.

Como se não bastasse, depois do matrimônio elas se mudam para a casa do marido e as que se casam com o filho mais velho se tornam responsáveis por cuidar dos sogros. Há também a crença de que a perpetuação da família se dá pela linha patriarcal e uma interpretação do hinduísmo - religião da qual 80% dos indianos são adeptos - de que o últimos ritos do pai devem ser realizados pelo filho homem.

- Há mulheres que sofrem maus-tratos do marido e dos sogros se não têm um bebê do sexo masculino - comenta a pesquisadora. - Há também toda uma indústria de fomentação da prática. Houve uma época, por exemplo, em que era comum montarem clínicas para detecção do sexo ao lado de locais em que praticavam abortos. Coincidentemente, quase todos os resultados apontavam que as grávidas esperavam meninas.

Balakrishna observa ainda que o fetícidio de meninas se intensificou ao longo dos anos. Em 1901, o censo registrava que a média era 972 mulheres para cada 1000 homens em toda a Índia. No último censo, em 2001, essa taxa caiu para 927.

- Isso deixa claro que a seleção não é só uma questão de tradição - comenta a pesquisadora.