Título: O poder, cadê o poder?
Autor: Emir Sader
Fonte: Jornal do Brasil, 06/02/2005, Outras Opiniões, p. A11

O tema voltou a debate no Fórum Social Mundial de Porto Alegre este ano: ''mudar o mundo sem tomar o poder''? A fórmula de John Holloway, apoiada em formulações dos zapatistas, parece fascinante. Ele dizia, em um debate: ''Chega de capitalismo, chega de Estado, chega de governo''. ''Deixemos de reproduzir cotidianamente o capitalismo. Digamos um não.'' ''O capitalismo é um asco, o governo é um asco, o Estado é um asco.'' Para concluir com seu mote: mudar o mundo, sem tomar o poder. O convite a rejeitar as fórmulas da esquerda tradicional, seja de ''assalto ao poder'' - com a caricatura do assalto ao Palácio de Inverno em 1917 como uma referência a evitar -, seja da paciência, para um dia conseguir o triunfo eleitoral, quando as condições estiverem maduras - tem sua sedução. Afinal, tanto partidos comunistas, quanto social democratas entraram em crise aparentemente irreversível e, com eles, formas de fazer política e propostas de transformar o mundo. Se trataria de centrar a ação nos movimentos sociais e suas formas de criar novas formas de sociabilidade - de que os caracóis de bom governo dos zapatistas, na região de Chiapas, no sul do México, seriam um bom exemplo.

O tema é bom, porque parte de falências reais da esquerda. Em primeiro lugar, a da ilusão que a tomada do poder do Estado garante o poder e a capacidade de transformações profundas da sociedade. Certamente a caricatura não vale para a revolução soviética, que não se reduziu ao assalto ao Palácio de Inverno, mas foi um prolongado processo de construção de uma alternativa popular ao regime zarista, iniciada a exatamente um século, em 1905, para desembocar no movimento que faria, a partir de 1917, da Rússia a segunda potência mundial, depois de ter sido um país parecido anteriormente com a Turquia.

É certo que terminou triunfando uma corrente na URSS que acabou concentrando o poder no Estado, ao invés do projeto original dos sovietes, estatizando ao invés de socializar os meios de produção. É certo também que o modelo soviético que se gestou a partir desse processo acabou sendo uma caricatura sua, sem revolução, nem transformações profundas das relações sociais.

É igualmente certo que a social democracia foi gradualmente abandonando o projeto socialismo, adequando-se às normas do mercado capitalista primeiro, em uma espécie de tentativa de ''humanizar o capitalismo'', e finalmente desembocando na adoção do neoliberalismo, indiferenciando-se praticamente da direita tradicional.

No entanto, o fracasso dessas duas correntes não abole a política, nem a necessidade que a resistência dos movimentos sociais ao neoliberalismo se limite ao plano social, entregue o Estado nas mãos dos que o financeirizam e o privatizam e fazem dele simplesmente um comitê executivo das classes dominantes. Seria renunciar às grandes transformações históricas preconizadas pela esquerda, para adotar a infeliz frase de efeito das ONGS: ''Pensar global e agir local'', regalando para os liberais o espaço das grandes disputas mundiais. Seria abandonar a proposta de construção de um outro mundo possível, para resignar-nos à resistência ao mundial atualmente existente.

As experiências mais recentes dos movimentos sociais latinoamericanos - no Equador, na Bolívia, na Argentina, no México - demonstram as limitações de uma luta que se reduz ao plano social. Ou delegam a outros - como no caso equatoriano - e rapidamente se sentem traídos. Ou deixam que outros resolvam o tema político - como no caso dos piqueteros argentinos - e as relações de poder se recompõem seus sua participação.

Trata-se de encontrar outra forma de articular o social e o político, como meio de construir um bloco alternativo de poder, que recolha ao mesmo tempo forças econômicas, sociais, políticas e culturais, para geras as condições de construção de um outro mundo possível. O social é condição necessária desse movimento, mas não suficiente, porque necessariamente fragmentado e localizado. Só a esfera política permite cristalizar a construção de um projeto hegemônico alternativo.