O Globo, n. 31672, 24/04/2020, p. 11

'Com o colapso da saúde, as pessoas se isolarão sem coordenação'

Silvia Amorim

Há 20 anos, o Brasil buscava solução para uma outra epidemia mundial: a Aids. No cargo de ministro da Saúde estava o hoje senador José Serra (PSDB-SP).

Aos 78 anos, ele faz parte do grupo de risco para a Covid-19 e está em isolamento. Sua voz é uma das que se levantam no Senado em defesa do distanciamento social como única alternativa para reduzir os impactos da pandemia na saúde e na economia.

— Se perdermos vidas, as pessoas ficarão com mais medo e reclusas. Se tivermos colapso da Saúde, vão se isolar de forma voluntária e descoordenada. Não há dilema —disse ao GLOBO.

Serra deu a entrevista por e-mail, um dia antes do novo titular do ministério, Nelson Teich, tomar posse, no lugar de Luiz Henrique Mandetta.

 

Há semelhanças entre as dificuldades da Saúde hoje no combate ao novo coronavírus e aquelas de 20 anos atrás?

O enfrentamento à Aids foi um episódio que trouxe uma reviravolta no sistema de saúde do Brasil. Foi preciso pulso forte e bater de frente com os interesses da indústria farmacêutica internacional para a quebra de patentes. A luta não se restringiu à prevenção da transmissão da doença. Fomos também em busca de tratamento. Isso foi fundamental para a queda do número de mortes e provocou mudança radical no mercado de medicamentos no Brasil. Foi uma batalha difícil, mas diferente da que vivenciamos hoje. Agora, a pandemia afetou diretamente a rotina mundial. De repente, nações ricas e pobres se viram dominadas por um inimigo desconhecido e invisível, com consequências nefastas e sem controle, tanto do ponto de vista da saúde quanto da economia.

O debate entre saúde e economia é um ponto nevrálgico hoje. O senhor foi ministro da Saúde e também professor de Economia. Qual sua opinião sobre esse dilema?

É importante salientar que estamos vivendo uma pandemia com contágio veloz e taxas de mortalidade que superam em dez vezes as de uma gripe comum. Neste contexto, mesmo sem medidas estatais de contenção, as pessoas já buscariam um distanciamento natural. Ocorre que, para evitarmos um colapso do sistema de saúde, tivemos que promover, inclusive pela coerção do poder estatal, um isolamento social mais severo que gera paralisia em diversos setores econômicos. A alternativa seria pior, ou seja, não promovermos o isolamento necessário e experimentarmos colapso do sistema de saúde e social. Vimos que as localidades que chegaram neste estágio de colapso pararam completamente suas atividades, não por demanda estatal, mas por medo, pela absoluta falta de clientes. Assim, não vejo um dilema de fato.

Há economistas, empresários e o presidente Jair Bolsonaro que pensam o oposto.

Quem pensa diferente está ancorado em uma realidade que não existe mais. Não há como pretender uma volta rápida à normalidade antes de superarmos o vírus. O isolamento social é o problema mas também é a solução. A alternativa é pior. Se perdermos vidas, as pessoas ficarão com mais medo e reclusas. Se tivermos colapso, vão se isolar de forma voluntária e descoordenada. Se salvarmos vidas, mas perdermos empresas e empregos, teremos um ciclo depressivo longo. Só há um caminho certo: nos ajudarmos como sociedade para salvarmos a todos e voltarmos a produzir e consumir da forma mais rápida o possível, mas só depois que superarmos o vírus, sem deixar ninguém para trás.

Como ficam as limitações financeiras do governo para amparar a população se a pandemia se prolongar?

As restrições orçamentárias precisam ser relativizadas. Afinal, o setor privado está no chão, sem poder produzir ou consumir, poupando cada recurso da forma mais segura possível. Neste contexto, um déficit público amplo na verdade representa uma medida de enorme responsabilidade fiscal do estado. Não apenas por salvar vidas, conter a fome e a miséria, preservar empregos e manter empresas dormentes, mas porque isso irá permitir a preservação da sua capacidade de arrecadação futura, com recuperação muito mais rápida da renda, do consumo e da produção. Em outras palavras, caso não tivéssemos feito isolamento social e gastado vultosos recursos por meio de déficits públicos, estaríamos em pior situação daqui a alguns anos. Não teríamos apenas perdido mais vidas, mas teríamos tido uma depressão mais intensa e uma recuperação muito mais lenta, com desdobramentos bem mais negativos para as contas públicas.

Em entrevista recente o senhor elogiou o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, mas disse que faltava celeridade ao ministério. Mantém essa avaliação?

Sim. É verdade que os testes e EPIs (equipamentos de proteção individual) estão faltando no mundo inteiro. Mas, aqui no Brasil, a cada dia há promessa de que chegarão testes, máscaras, luvas e não se vê isso na prática. Até hoje não se teve uma explicação do que de fato aconteceu com a carga de equipamentos chineses que deveriam vir para o Brasil e que, dizem, foi interceptada pelos EUA. Não há explicação. Mas o ministro Mandetta se esforçou para orientar a população com base em informações científicas e seguindo as diretrizes da OMS (Organização Mundial da Saúde).

Como avaliou a demissão dele pelo presidente Bolsonaro?

Não vejo o menor sentido na demissão neste momento. É delicada e pouco recomendável no meio de uma pandemia mundial. No entanto, desejo que o novo chefe da pasta tenha sucesso na empreitada e possa conduzir essa crise da melhor maneira possível para os brasileiros. Nelson Teich é um oncologista renomado e respeitado e merece um voto de confiança. O momento exige união, sobretudo entre os poderes da República. E, novamente, quero enfatizar que o relaxamento nas medidas de distanciamento social poderia significar a morte de muitas pessoas.

Aos 78 anos, o senhor faz parte do grupo de risco. Como está se protegendo?

Da mesma forma que a maioria dos brasileiros, mudei a rotina. Estou me protegendo ficando em casa. Trabalhando à distância, participando das sessões deliberativas remotas do Senado, apresentando e aprovando projetos. Foram cinco apenas neste mês. O que destina R$ 2 bilhões às Santas Casas e hospitais filantrópicos foi aprovado nas duas Casas, mas infelizmente o presidente ainda não o sancionou. Quando o fizer, vai ajudar a fortalecer a rede pública de saúde. Neste ponto, falta um entendimento mais claro do chefe do Executivo e sua equipe sobre o conceito de emergência de saúde. Tempo é vida e eu espero que esse dinheiro chegue às Santas Casas o quanto antes.