Título: Quando os idosos se tornam filhos
Autor: Gustavo Igreja
Fonte: Jornal do Brasil, 06/02/2005, Brasília, p. D3

Pessoas da terceira idade podem ser tuteladas em casos de doença ou de incapacidade para expressar a própria vontade

Os olhos pesam. Os músculos falham. Os ossos doem. Mas os pés não cansam de buscar ajuda onde quer que surja um sinal de esperança. Aos 82 anos, Seu Itamar (nome fictício) sai cedo de casa e só volta pouco antes de o dia escurecer. Bate perna para ficar longe da família. E para encontrar quem reconheça nele a lucidez que ele afirma ter, a sensatez da qual o filho duvida e que, jura ele, é mais do que suficiente para que não lhe ''usurpem'' só os bens, mas o direito de continuar existindo. Idoso, seu Itamar clama ser o exemplo negativo, a brecha em um processo destinado a ajudar pessoas, conhecido como interdição ou curatela. É quando a Justiça determina que um curador passe a cuidar dos bens de alguém sem discernimento para os atos civis, como doentes mentais, enfermos que não possam expressar sua vontade ou inaptos a realizá-las. E parcialmente no caso de alcoólatras, viciados e pródigos (que gastam em excesso sem responsabilidade)

- É um processo comum, que ocorre todos os dias. É importante para muita gente que precisa de alguém que o ajude a não passar dificuldades. Um acidentado, por exemplo. Alguém com Alzheimer. O curador do patrimônio tem a obrigação de usar o dinheiro do tutelado apenas em benefício dele, para não deixar que lhe falte nada - explica a promotora Sandra Albuquerque, da 2ª Promotoria de Família do Ministério Público do DF.

O autor da ação na Justiça tem de argumentar porque acredita que o alvo do processo de interdição não tem condições de reger os próprios bens. O juiz convoca então um interrogatório da pessoa a ser interditada, onde, juntamente com um promotor do Ministério Público (MP), tentará perceber se a pessoa é ou não apta. Depois, um perito psiquiatra é nomeado para realizar exame clínico que detecte a inaptidão. Se os resultados forem contraditórios, novos laudos e interrogatórios podem ser solicitados, até que se prove ou não a necessidade de interdição.

- É um processo delicado, que exige muita atenção. Se há contradição, se o laudo dis uma coisa e a realidade, outra, ficamos ainda mais atentos. A interdição não pode ser usada para motivo outro que não seja a proteção de uma pessoa- garante ela.

Jura Seu Itamar, é exatamente o que ocorre com ele. Cheio de documentos embaixo do braço, dentre cópias do processo e uma série de outros papéis que - espera o idoso - serviriam para comprovar-lhe a lucidez, ele diz ser vítima de um filho ganancioso que quer ter o controle sobre os poucos bens que restaram ao pai. O motivo do suposto filho ingrato, diz ele, seria continuar vivendo como um milionário, mesmo não ganhando o suficiente para levar a vida que sonha.

- Eu sou lúcido! Eu ando, pego ônibus, estou juntando gente que possa me ajudar. Ele quer um terreno meu que vale algum dinheiro para continuar frequentando a alta sociedade. Ele não tem amigos. A casa dele é vazia. E eu, lá dentro, não valho nada. Sou maltratado. Me regulam comida. Nem comigo falam direito. Só minha nora. De vez em quando. Por isso eu saio de casa. Tenho até medo de um ataque dele. Lá dentro, tenho medo - lamenta o velho, entre lágrimas, com eloqüência que em nada corrobora sua suposta insensatez.

Perambulando, repetindo exaustivamente a triste história em vários lugares do DF, o idoso chegou à promotora Sandra Albuquerque, que estuda hoje o caso. Antes, passou pela Defensoria Pública, pela Ordem dos Advogados do Brasil e até pela Câmara Legislativa. Ao entregar uma argumentação escrita e mostrar os papéis que espera serem provas, não hesita em xeque em questão o processo:

- Acho que o legislador teve até boa intenção. Mas que diabos de lei é essa que vai me fazer refém? O laudo que diz que eu sou doido foi comprado. E se comprarem outro, vão realmente me taxar de doido. Olhe para mim e diga se eu não sou lúcido!