Título: Bixiga, teatro e TV: Zé Celso e Sílvio Santos
Autor: Eduardo Suplicy
Fonte: Jornal do Brasil, 06/03/2005, Outras Opiniões, p. A11
Não vai demorar muito e São Paulo vai viver dois acontecimentos importantes na história da vida cultural brasileira, com repercussão em todo o Brasil. O primeiro será em abril, quando o Teatro Oficina vai estrear o espetáculo ''A Luta'', a parte conclusiva de Os Sertões, de Euclides da Cunha, depois de já ter apresentado as partes iniciais ''A Terra'', ''O Homem I'' e ''O Homem II''. A outra notícia é a conclusão do belo entendimento entre Sílvio Santos, do SBT, proprietário de quase todos os imóveis do quarteirão onde se situa há 40 anos o histórico Teatro Oficina, na Rua Jaceguai, no Bixiga - ou Bela Vista - e José Celso Martinez Corrêa, o inovador da cultura, grande artista e diretor do teatro. Tive a felicidade de participar desse entendimento, aproximando dois amigos meus. Foi no dia 18 de abril do ano passado que, numa agradável surpresa, Zé Celso me convidou para ir até o Oficina, para escrever com ele uma carta a Sílvio Santos. Disse que tinha a intuição de que essa seria a melhor maneira de acabar com os 25 anos de divergências entre os dois - que sabiam da história do mérito um do outro, mas pareciam ter objetivos muito diferentes.
Sílvio Santos quer construir um conjunto grande e moderno com áreas de lazer, cultura, alimentação e comércio, enquanto Zé Celso quer preservar o Teatro Oficina, expandindo-o para se transformar num Teatro-Estádio, tal como concebido no projeto original de Lina Bo Bardi - a genial arquiteta ítalo-paulistana, autora do prédio do Museu de Arte de São Paulo. No meio do manuscrito, resolvemos ligar para o Sílvio Santos, que logo atendeu. Coincidentemente naquela semana, o psicanalista Contardo Calligaris, num artigo na Folha de S. Paulo, também chamou atenção para a possibilidade de entendimento, tanto para favorecer a preservação de um espaço histórico como aquele, quanto para permitir que a cidade ganhasse com um novo empreendimento comercial. Estava mais do que na hora de juntar os dois. Sílvio Santos mostrou-se sensível, disse que gostaria de conhecer o Teatro Oficina. Marcou uma visita para o domingo seguinte.
Chegou pontualmente às 17 horas. Foi recebido pelo elenco formado por cerca de 50 pessoas, incluindo crianças, que cantaram para ele uma das músicas de Os Sertões. Quem assistiu ao vídeo desse encontro percebeu que Sílvio Santos ficou feliz. Zé Celso explicou a história do teatro, desde o primeiro prédio - que foi incendiado - e tudo o que ocorreu nos anos de inovação, depois de sua perseguição política e exílio, até o esforço da retomada do teatro, ao retornar ao Brasil. Contei a Sílvio Santos o quanto aquele Teatro fazia parte da minha formação e de como, desde os anos 60, ter assistido a peças como Galileu, Galilei, de Bertholt Brecht, Os Pequenos Burgueses, de Maximo Gorki, O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, e Roda Viva, de Chico Buarque de Hollanda, entre outras, foi janela aberta na consciência de minha geração e das outras que vieram depois. Zé Celso falou de sua admiração e respeito pelo talento de Sílvio Santos em conseguir se comunicar com o povo e fazer uma televisão que mexia com as camadas mais simples da população. ''É um verdadeiro dom''. Transmitiu sua idéia de abrir o Teatro para uma grande área do terreno que se transformaria num estádio para espetáculos como ''A Luta'', a tragédia do massacre de Os Sertões.
Desde então, o entendimento entre os dois avançou, a partir dos esforços dos arquitetos Marcelo Ferraz, Marcelo Suzuki e Francisco Fanucci que, respeitando o projeto de Lina Bo Bardi, harmonizaram-no com o projeto de construção de um shopping de múltiplo uso para o SBT. Há apenas alguns ajustes para que os dois batam o martelo. Se isso acontecer, dentro de algumas semanas o Grupo Sílvio Santos poderá começar a construção do empreendimento.
Os Sertões, montado pelo Oficina, tem despertado muita gente para a obra grandiosa de Euclides da Cunha. Esse efeito positivo será multiplicado quando puder ser mostrado no Teatro-Estádio e transmitido para todo o Brasil pelo SBT. Essa qualidade da apresentação de Os Sertões pelo Oficina foi confirmada em maio na Alemanha, onde foi muito bem recebida. Como conseqüência, o grande dramaturgo alemão Frank Castorf convidou o grupo de Zé Celso para apresentar o espetáculo, que considerou como o ''renascimento de uma grande nação'', no festival de Berlim de 2005. O Oficina também recebeu convite do Festival de Viena, para apresentar a versão integral em 2006. Voltando ao presente, o Oficina vai se apresentar este ano nas comemorações do ''Ano Brasil-França'', em Paris. Sorte dos alemães, dos austríacos, dos franceses e, principalmente, sorte nossa, que temos o Zé Celso por perto, naquele espaço do Bixiga. E, se depender de mim e, tenho certeza, do povo paulistano e de toda a classe artística brasileira, vai permanecer ali por muito tempo.