Título: ''Omissão está batendo à porta''
Autor: Marco Antônio Martins
Fonte: Jornal do Brasil, 06/03/2005, Rio, p. A16
Empossada no fim do ano passado na 1ª Vara de Infância e Juventude, a juíza Ivone Ferreira Caetano, 60 anos, tem características opostas à do antecessor, Siro Darlan, hoje desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Enquanto Siro era uma figura pública que se relacionava com a mídia de forma intensa, Ivone prefere os bastidores, o anonimato ¿ o que não a impede de tomar decisões ousadas, como a de proibir que o jovem conhecido como Mirinho, de 16 anos, filho do contraventor Waldemiro Paes Garcia, o Maninho, desfilasse pelo Salgueiro no carnaval. Pouco mais de dois meses depois de tomar posse, Ivone concede ao Jornal do Brasil a sua primeira entrevista. A juíza expõe suas opiniões sobre menores de rua e sobre os envolvidos com o tráfico. ¿É necessário que a sociedade se conscientize de que criança e adolescente são dever de todos. O que ocorre é uma omissão contemplativa que começa a chegar às nossas mesas. Na verdade, já está batendo em nossa porta¿, alerta, admitindo ter superado preconceitos em sua trajetória. ¿Quem nasce com pele negra neste país e diz que nunca sofreu preconceito ou está mentindo, o que acontece na maioria das vezes, ou está alienado. Nascer com a pele negra neste país é sinal de preconceito¿, diz. A magistrada não hesita em desaprovar as esmolas dadas a crianças de rua. Para Ivone, a doação é prejudicial. ¿A esmola sedimenta a permanência na rua. Toda criança de rua, em regra, tem uma família por trás, resgatável ou não, mas essa família deveria ser tratada¿, diz Ivone, que de tanto trabalho mal tem tempo para os próprios filhos. ¿Eles reclamam que me dedico demais¿.
- Como a senhora analisa a situação dos menores de rua na cidade do Rio?
- É uma preocupação de todos. O menino de rua é atribuição do Executivo municipal. Na verdade, depois que assumi a Vara da Infância percebi que já existe muita coisa pronta, feita e realizada na prefeitura em relação à criança em situação de risco. O que verifico é que não há uma ação concatenada. É preciso amarrar todas as pontas. Primeiro, é necessário que a sociedade se conscientize de que criança e adolescente é dever de todos. O que a gente vê é que ocorre na sociedade uma omissão contemplativa que começa a chegar às nossas mesas. Na verdade, já está batendo em nossa porta.
- A ajuda social não é eficiente?
- Um dos pontos negativos dessa questão é a criança nas ruas recebendo esmolas ou pratos de comida. Essa doação sedimenta a permanência dela na rua. Toda criança de rua, em regra, tem uma família por trás, resgatável ou não, mas essa família deveria ser tratada.
- O poder público tentou intervir no ano passado, recolhendo as crianças das ruas.
- Acho que a criança não deveria ser retirada na forma de recolhimento, mas de acolhimento. Essa é a grande questão: acolher a criança, e não recolher. Recolher para colocar em local mal estruturado não vai solucionar o problema. É preciso ter um sistema estruturado em que haja atrativos suficientes para mantê-la ocupada e que possa dar uma perspectiva de vida a ela.
- Como fazer para que os abrigos mantenham as crianças lá?
- Não são só abrigos. Teria que haver toda uma mudança de postura e de visão. A começar pela sociedade. Depois, modificar outros setores para atender a essa necessidade, que é dar assistência, recolher e dar uma perspectiva de vida à criança em situação de rua. E veja, não são só essas crianças, mas outras que estão em situação de abandono. É poder atrair e manter esse menino ocupado em atividades que, no futuro, lhe darão a possibilidade de ingressar no mercado de trabalho e ter a sua cidadania assegurada.
- As crianças têm sido deixadas de lado nos últimos anos...
- Acho que esse é um processo que atravessa séculos no qual nossa sociedade continua omissa. Agora, cobrando muito, mas sem dar nada em contrapartida. Está na hora de todos nós colaborarmos fazendo a nossa parte. É lógico que essas soluções serão coordenadas. Muitas iniciativas existem, muitos setores estão fazendo algo, só que não está coordenado. Enquanto não houver essa integração, não vai resolver. Você resolve o problema de um determinado grupo aqui ou ali, mas não o todo.
- A senhora já conversou sobre isso com o prefeito Cesar Maia?
- Ele colocou um grupo de funcionários à minha disposição. Todo esse problema acaba refletindo nas varas da infância. É aí que a gente começa a sentir o desânimo de não ver as situações resolvidas, as políticas públicas voltadas para a infância e juventude não implementadas ou não aplicadas. Mas eu não sou uma mulher de desistir.
- Ainda chegam à Vara da Infância muitos casos de violência praticados pelos próprios pais?
- Esse é um caso crônico. Nós não podemos dizer que ultimamente tem havido muita violência contra a criança. Não é bem assim. A violência contra menores é crônica e bastante antiga, apenas não era divulgada. Até porque o código anterior tratava tão somente da criança em situação de risco ou em situação irregular. O Estatuto da Criança e do Adolescente é aplicado a toda criança. Toda essa violência ficava, anteriormente, no seio da família. Isso não era divulgado e não chegava à Justiça porque era tomada como uma ingerência. A lei apenas socorria quem estava em uma situação irregular, e agora não é mais assim.
- Mas só se chega à Justiça casos que atingem as classes pobres.
- É uma verdade. Mas este quadro está mudando. O costume era esse. Está havendo mais divulgação. A criança e o adolescente são uma questão para hoje. Muitas crianças da classe média já dizem: ''Papai, o senhor não está agindo de acordo com os meus direitos''. Isso acontece porque existem informações que anteriormente não existiam.
- A senhora mudou alguma coisa no processo de adoção?
- Continua basicamente da mesma forma. Apenas tenho as minhas convicções e o meu perfil de atuar. A corregedoria cassou uma liminar, aquela que limitava o pedido a crianças com idade acima de 2 anos. Havia uma portaria que suspendia o pedido de habilitação para adoção para pessoas que expressassem determinadas preferências de faixa etária, gênero e raça. Isso em detrimento do enorme contingente que nós temos de crianças que estariam fora dessas especificidades e sem chances de adoção. A única diferença é essa. O processo de habilitação não pode ser virtual. A pessoa pode escolher desde que haja crianças com aquelas características e que ela esteja na lista de espera no momento de escolha. Se não, terá que voltar para o fim da fila. Não podemos fabricar crianças. Temos muitas crianças que não são o ideal do brasileiro.
- E qual é o ideal buscado pelas famílias?
- A preferência está sendo para crianças de até dois anos, do sexo feminino, brancas e que não tenham problemas de saúde, física e mental.
- A senhora acha que isso é sinal de preconceito?
- É da índole do brasileiro. Ainda temos muitas frentes de preconceito neste país. Não há como esperar um comportamento diferente da sociedade porque, em que pese todas as negativas, a nossa sociedade é preconceituosa. O que me surpreendeu foi a minha atuação em São João de Meriti. Lá, vi muitas famílias brancas adotando crianças negras. Vi crianças com problemas físicos serem adotadas com muito carinho. Nunca vi rejeição porque era de uma raça. Parece-me que aqui (no Rio) a coisa fica mais forte. É tudo uma questão de educação. Eu não advogo a adoção internacional, mas o estrangeiro não faz essa distinção.
- Ou seja, as pessoas ainda mantêm velhos hábitos.
- Já que se fala em adoção, é bom colocar que nós não estamos procurando uma criança para uma família. Isso não nos interessa. O que nos interessa é uma família para uma criança. É uma relação inversa. É que uma criança tenha uma família e se sinta bem. Todo mundo quer uma criança muito semelhante a sua família, até para esconder da sociedade o fato de que a criança é adotada.
- Qual o sentimento da senhora quando ouve que menores estão envolvidos com o tráfico de drogas?
- É o de que nós não estamos cumprindo o nosso dever. E não estou falando só da magistratura, mas do poder público, o Executivo, o Judiciário e a sociedade civil não estamos cumprindo o nosso dever, a nossa obrigação, e por isso as nossas crianças estão sendo adotadas.
- Como é a relação da juíza da infância com seus filhos?
- Eu fui uma mãe rígida. Eles reclamam um pouco, mas acredito que tenha acertado. Atualmente, os meus filhos, que não são adolescentes, reclamam de toda a dedicação e todo o tempo que emprego na Vara da Infância e Juventude.
- A senhora já sofreu algum tipo de preconceito?
- Quem nasce com pele negra neste país e diz que nunca sofreu preconceito ou está mentindo, o que acontece na maioria das vezes, ou está alienado. Nascer com a pele negra neste país é sinal de preconceito. Você tem que saber como vai enfrentá-lo. Se bem que eu acho, que com o advento da polêmica Lei das Cotas, que esse panorama está mudando. Tenha adversários ou adeptos, a lei serviu para jogar no meio da mesa a questão do preconceito no país.