O Estado de S. Paulo, n. 46163, 08/03/2020. Metrópole, p. A14

Em 20 anos, aumenta a participação das mulheres na produção de ciência
Giovana Girardi


 

Na semana passada, o esforço para sequenciar o genoma do coronavírus identificado em um brasileiro foi liderado por um grupo de pesquisa composto em sua maioria por mulheres – fato que acabou chamando tanta ou mais a atenção que o feito científico em si. Mulheres que se destacam na ciência, porém, estão longe de ser uma raridade no País, apesar de ainda reinarem algumas desigualdades.

A proporção entre homens e mulheres que publicam pesquisas no Brasil vem crescendo e está cada vez mais próxima, como revela o recém-publicado relatório A Jornada do Pesquisador pela Lente de Gênero, da editora científica Elsevier. O levantamento aponta proporção de 0,79 mulher para cada homem que publica artigos. Em porcentagem: 44,25% são mulheres e 55,75%, homens. O estudo foi antecipado pela Revista Pesquisa Fapesp.

A pesquisa considerou a paridade de gênero entre cientistas de 15 países a partir de publicações em periódicos da base Scopus em dois períodos: de 2014 a 2018 e de 1999 a 2003. No intervalo, houve avanço da participação feminina em todo o mundo, passando de 29% para 38%. No Brasil, no início do século, 35,3% dos autores eram mulheres. Em termos de paridade, o País só perde para Portugal (48,32%), e para a Argentina, única nação que tem mais mulheres cientistas assinando artigos que homens: 51%. Mas fica à frente de Estados Unidos (33,62%) e Alemanha (32,02%). A pior proporção foi registrada no Japão – 15,22%.

Mas se na autoria da pesquisa o mundo está mais próximo da paridade de gênero do que há uma década, com o tempo, a proporção de mulheres para homens como autores diminui. Com isso, eles publicam mais, têm maior impacto e exposição ao avanço da carreira. No Brasil, entre 2014 e 2018, cada homem publicou, em média, 4,27 artigos, ante 3,11 por mulher. A diferença teve pouco impacto no nível de citação dos autores, que foi similar para os dois gêneros.  

Cargos de chefia. “Em geral a presença feminina melhorou como um todo na educação no País. No ensino médio, elas completam mais os estudos. Uma análise da OCDE com pessoas entre 18 e 30 anos mostrou que enquanto 30% delas não haviam terminado o ensino médio, entre os homens era mais de 40%”, comenta a bioquímica Helena Nader. Ex-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e atual vicepresidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), ela afirma que há avanços claros, mas pondera que ainda são poucas pesquisadoras do Brasil que chegam a cargos elevados.

“O cenário está melhorando, hoje as mulheres são maioria entre os ingressantes do ensino superior e elas também se formam mais que os rapazes. Na pós, como um todo, também, mas entre os bolsistas de produtividades do CNPq os homens ainda são maioria”, aponta Helena. As bolsas do CNPq, principal órgão de fomento à ciência do País, têm os valores mais altos e aumentam à medida que cresce a produção do pesquisador. Levantamento da ONG Gênero e Número sobre a base do CNPq em 2015 observou que apenas 25% dos bolsistas 1A, o nível mais elevado, eram mulheres.

A fim de dar visibilidade ao trabalho das cientistas brasileiras, foi lançada recentemente a plataforma Open Box da Ciência, que destacou 250 pesquisadoras. Helena é uma delas. A cirurgiã Angelita Habr-Gama também). Abaixo há as histórias de outras três.

Distribuição. A distribuição mais equânime por autores, porém, não ocorre em todas as áreas. As brasileiras ocupam posições melhores em Médicas e Biológicas. Entre os artigos publicados de 2014 a 2018, a participação feminina era majoritária na autoria de estudos sobre diabete e endocrinologia (1,44 mulher para cada homem); psicologia (1,65) e pediatria (1,81). A área com mais mulheres é enfermagem, com 2,7 para cada homem – hegemonia que se repete no mundo e que no Brasil aumentou ao longo dos anos.

Chamam a atenção os saltos em algumas áreas. Em fertilidade e nascimento, elas deixaram de ser minoria no período de 1999 a 2003 (0,8 para cada homem) para se tornarem maioria entre 2014 a 2018 (1,53 para 1), assim como em clínica médica geral (de 0,77 para 1,32) e em neurociência (de 0,85 para 1,20).

Nas exatas, ainda há sub-representação. Só 0,25 para 1 em Ciência da Computação e em Matemática – praticamente igual às taxas de 20 anos atrás. Nas engenharias e em energia, 0,3 para cada homem. Mas houve avanços. Em ciências planetárias, a proporção subiu de 0,26 para 0,46 para cada homem. Em economia, foi de 0,1 para 0,4.

  

Sob ataque

“A ciência está sob ataque. O País está retrocedendo, com machismo, com piada de mulher. Está voltando a velha ideia de que a responsabilidade dos filhos, da casa, é da mulher. É preciso que se mantenham os recursos na ciência, ou não vamos ter nem mulher nem homem na ciência”

Helena Nader

Vice-presidente da ABC 

Na linha de frente - a equipe feminina que decifrou o coronavírus

A médica Ester Sabino, de 60 anos, professora do Departamento de Moléstias Infecciosas da Faculdade de Medicina da USP, faz ciência de ponta não é de hoje no Brasil. Em meados dos anos 1990, foi uma das pesquisadoras a montarem uma rede que fez o sequenciamento genético do HIV no Instituto Adolfo Lutz, quando o País despontava no tratamento da aids.

Em 2015 se tornou a primeira mulher a dirigir o Instituto de Medicina Tropical da USP e no ano seguinte, com a epidemia de zika, mergulhou nas arboviroses. Mas foi na semana que passou, ao liderar o grupo que sequenciou o genoma dos dois primeiros casos de coronavírus no Brasil, que Ester ficou instantaneamente famosa. Ela e toda a sua equipe – formada majoritariamente por mulheres.

“É um sentimento de orgulho pela ciência brasileira, por serem mulheres por trás das pesquisas. Orgulho acho que foi a palavra que mais ouvi”, diz a coordenadora do Projeto Cadde (Centro Conjunto Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus), que desenvolveu tecnologia rápida e barata para sequenciar vírus e, assim, monitorar epidemias em tempo real.

O trabalho com o coronavírus foi possível justamente porque o Cadde vem acumulando experiência no assunto desde o surto de zika, quando houve alta de casos de microcefalia no País. “Aqui no Brasil temos tido muita epidemia. Então, estamos ficando espertos”, brinca.

Companhia. Por falar nessa equipe feminina, a bioquímica Jaqueline Goes de Jesus, de 30 anos, pós-doutoranda em Moléstias Infecciosas sob orientação de Ester, estava fazendo esse monitoramento para o surto atual de dengue quando o coronavírus chegou ao Brasil. Foi ela que fez a ponte com o Adolfo Lutz, responsável pela vigilância da doença em São Paulo e que recebeu a amostra para confirmar a infecção.

“Fizemos o sequenciamento dentro da nossa rotina que já tínhamos com a dengue. As pessoas falaram bastante de ter sido feito em 48 horas, e na hora a gente pensou: ‘Mas isso é normal aqui dentro’. Depois vimos outros pesquisadores elogiando e pensamos: ‘Puxa, acho que é uma grande coisa mesmo’”, diz Jaqueline./ Giovana Girardi
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Mestra em falar de física a elas

No dia 10 de fevereiro, quando São Paulo ficou debaixo d’água, Sandra Padula, de 63 anos, professora do Instituto de Física Teórica da Unesp, esperava receber cerca de cem garotas do ensino médio, para ter um dia de discussão sobre a física de partículas.

Apesar de a cidade ter ficado em boa parte intransitável, incluindo a Barra Funda, onde se localiza o IFT, cerca de 50 meninas conseguiram chegar para aprender sobre o tema cabeludo.

“Esse hoje é o meu xodó”, conta Sandra. “Nessa aventura incrível que é fazer física experimental de altas energias, veio também uma outra paixão: fazer divulgação científica”, diz a pesquisadora que investiga partículas presentes nos núcleos dos átomos. Ela colabora, desde 2008, com os experimentos que são feitos dentro do maior acelerador de partículas do mundo, o LHC. Seu foco é nas propriedades do plasma de quark-glúon, que se forma nas colisões de prótons de núcleos de chumbo. Supõe-se que esse estado da matéria seja similar à condição que teria existido no início do Universo./ Giovana Girardi

Do sono ao sexo, tabu vencido

O tema principal de pesquisa da bióloga Monica Levy Andersen, de 46 anos, é ainda meio tabu mesmo dentro da ciência: o impacto que dormir mal pode ter sobre a sexualidade. Especialista em sono, a professora e vice-chefe do Departamento de Psicobiologia da Unifesp já descobriu que não ter boas noites de sono pode levar à impotência. A apneia, por exemplo, pode acabar prejudicando a ereção; o homem privado de sono tem redução de testosterona; a mulher tem menos frequência sexual e satisfação; a insônia po- de piorar a TPM. “Havia só cinco pesquisadores em todo o mundo que estudavam o assunto quando comecei, em 2000. Ainda há certo tabu, vergonha”, diz ela, que percebe, por outro lado, enorme curiosidade de colegas por seus resultados, mesmo que velada. Por parte dos pacientes que ela avalia no Instituto do Sono, da Unifesp, há um alívio. “Muitos têm dificuldade de debater isso com seus médicos. Mas já ouvi de homens comentários do tipo: ‘Ufa, agora está explicado... Tenho apneia e há três anos não tenho uma ereção’.”/ Giovana Girardi