Correio Braziliense, n. 20647, 03/12/2019. Mundo, p. 12
Palanque no tribunal
O ataque ao que chamou de lawfare — termo emprestado do inglês para designar a perseguição judicial — foi a linha-mestra da longa exposição da vicepresidente eleita da Argentina, Cristina Kirchner, na audiência a que compareceu ontem, em um tribunal de Buenos Aires, para testemunhar em um dos oito processos nos quais é acusada de corrupção. A oito dias de tormar posse com o cabeça da vitoriosa chapa peronista, Alberto Fernández, Cristina passou mais de três horas desafiando e questionando procuradores e juízes, que a apontam como chefe de uma organização criminosa dedicada a favorecer um empresário amigo em contratos para obras viárias na província sulina de Santa Cruz, reduto político dela e do falecido marido, Néstor Kirchner, ambos ex-presidentes.
A primeira vice eleita a responder perante a Justiça chegou ao Tribunal Oral Federal 2 (TOF 2) pouco depois das 9h30, recebida por dirigentes e militantes partidários, advogados e ativistas dos direitos humanos. Momentos antes, foi negado um último pedido do advogado Carlos Beraldi para que a audiência fosse transmitida por internet, nas redes sociais do Judiciário. E foi sobre essa decisão um dos primeiros questionamentos de Cristina. “Isso não parece importante para os senhores? A acusação que me fazem é de ter sido a chefe de uma associação ilícita. É sério que não lhes parece importante transmitir (a sessão)?”
Na linha daquilo que tinha publicado no Twitter antes de chegar ao tribunal, a ex-presidente exibiu na corte a eloquência que a fez conhecida nos palanques e em plenário, como deputada, presidente, senadora e, sobretudo, como candiadata. Ponteou praticamente todo o depoimento com a contestação da imparcialidade da Justiça, à qual acusou de “perseguir dirigentes políticos populares”, em aliança com o governo do atual presidente, o direitista Mauricio Macri, e com “os grandes meios de comunicação”. “Trata-se de condenar um governo, o de Néstor Kirchner, que saldou a dívida do país com o Fundo Monetário Internacional. Porque era preciso trazer de volta (à Argentina) o FMI. Isso é o lawfare”, disparou.
Amizade
No processo chamado de “obras viárias”, Cristina é acusada de integrar, com o ex-ministro do Planejamento Julio de Vido e outros altos funcionários, um esquema para ajudar o empresário Lázaro Báez a obter 51 contratos para construção e reparo de estradas na província de Santa Cruz. De acordo com os autos, as operações se prolongaram entre 2003 (primeiro ano de Néstor na Casa Rosada) e 2015 (o último da vice eleita, que sucedeu o marido em 2007 e exerceu dois mandatos). O montante envolvido foi avaliado em 46 bilhões de pesos (cerca de R$ 3,2 bilhões).
“Não sou amiga de Lázaro Báez, nunca fui amiga de Lázaro Báez”, argumentou a ex-presidente. “Mas não vou tolerar que alguém seja condenado por ser amigo de alguém: isso acontecia na ditadura”, atacou. “Este tribunal pratica o lawfare e, seguramente, já escreveu a minha condenação”, protestou. “Mas isso não me importa, podem saber: não me importa. A história me absolveu e me absolverá, mas será ela, a história, quem vai julgá-los”, emendou, dirigindo-se a promotores e juízes.
Cristina Kirchner exercia mandato de senadora até ser eleita vice-presidente, em outubro, na chapa peronista — de cujo comando abdicou em favor de Alberto Fernández, um peronista da ala centrista do partido que foi chefe de Gabinete de Néstor, mas se afastou da sucessora. Ela responde a oito processos, que incluem manipulação do câmbio nas últimas semanas do seu governo, enriquecimento ilícito com imóveis e um “propinoduto” denunciado por um ex-motorista do Ministério do Planejamento, que apresentou como elemento de acusação as cadernetas nas quais anotava os pagamentos feitos a políticos, na distribuição do dinheiro (em espécie) enviado por empresários. Em dois casos, são acusados também os filhos Máximo e Florencia.
“Há uma multiplicidade de acusações: sou a chefe de quatro associações ilícitas”, comentou, para em seguida ironizar os magistrados. “Na verdade, não sei como encontrei tempo para governar, porque parece que passei o tempo todo criando associações ilícitas. Duas em família e duas com empresários.” Assim como na chegada, Cristina saiu do tribunal sob aplausos dos correligionários, mas não antes de um desafio final. “Perguntas? Quem tem de responder a perguntas são os senhores.”
Frases
“Trata-se de condenar um governo, o de Néstor Kirchner, que saldou a dívida do país com o Fundo Monetário Internacional. Porque era preciso trazer de volta (à Argentina) o FMI”
“Não sei como encontrei tempo para governar, porque parece que passei o tempo todo criando associações ilícitas. Duas em família e duas com empresários”
“Perguntas? Quem tem de responder a perguntas são os senhores”
Cristina Kirchner, vice-presidente eleita da Argentina