Título: Nova luz sobre as privatizações
Autor: Samantha Lima e Mariana Carneiro
Fonte: Jornal do Brasil, 06/03/2005, Economia & Negócios, p. A21

Ganho com leilões de companhias elétricas foi corroído por créditos a compradores e operações de socorro às distribuidoras

A volta do processo de privatização à berlinda, por obra do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, reativa a discussão sobre a condução do programa de venda das distribuidoras de energia elétrica. Considerada por especialistas como ''a mais desastrosa'', a desestatização destas empresas já é alvo de pedido para formação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito. O autor, deputado João Pizolatti (PP-SC), afirma que faltam poucos acertos para a criação da CPI, cujo objetivo é lançar luzes sobre um processo que, somente com as distribuidoras de energia, rendeu R$ 27 bilhões ao país mas consumiu R$ 22 bilhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), entre recursos para os compradores, investimentos e socorros, de acordo com o Tribunal de Contas da União.

Há pouco mais de uma semana, Lula disse, em discurso no Espírito Santo, que havia mandado um companheiro abafar indícios de corrupção em um órgão do governo, sugerindo ser o BNDES. O diálogo, no entanto, não foi comprovado por Carlos Lessa, ex-presidente do banco oficial, mas reacendeu as investigações sobre as desestatizações do setor elétrico.

O relatório do TCU, que serviu de base à Comissão de Minas e Energia no pedido de abertura da CPI, mostra que, das 22 principais empresas que tiveram o controle acionário repassado para a iniciativa privada, 14 contaram com a ajuda do BNDES, no valor total de R$ 7 bilhões. O documento destaca que, ''em alguns casos, passados cinco anos da privatização, o saldo devedor era igual ao valor inicialmente financiado e em outros, principalmente em moeda estrangeira, o saldo devedor é maior que o financiado''.

O caso mais grave na época, aponta o relatório, referia-se ao débito da AES, de US$ 1,2 bilhão com o BNDES. A americana comprou a Eletropaulo em 1998 em um consórcio com a Light, através da subsidiária Lightgás. Em 2003, após o calote, a solução encontrada foi o banco se tornar sócio da empresa, com 50% das ações ordinárias menos uma, em nova corporação que passaria a se chamar Brasiliana. Assim, o débito caiu para US$ 510 milhões, com novo prazo de pagamento em 11 anos.

Sobre os valores atuais de débito, o BNDES não informa sob alegação de que os devedores estão protegidos pelo sigilo bancário.

Além da ajuda aos compradores, o BNDES também aportou R$ 8 bilhões na construção de usinas hidrelétricas e térmicas e R$ 7 bilhões em financiamento da Recomposição Tarifária Energética, criada para compensar perdas das empresas de energia com o racionamento.

- Essas empresas vieram ao país num momento em que havia paridade do dólar com o real. Quando houve a desvalorização, elas já sofreram uma grande perda. Com o racionamento, a receita caiu em 20% e não se voltou mais ao patamar de consumo. Por causa disso, o BNDES foi generoso com essas empresas. Mas desde 1997 se sabia que o país poderia ter o racionamento - critica Luiz Pinguelli Rosa, coordenador do programa de planejamento energético da Coppe/UFRJ e ex-presidente da Eletrobrás.

- Calculo em R$ 8 bilhões o rombo das concessionárias com o apagão. Mas essas empresas foram no mínimo ingênuas em acreditar num sistema que dependia de São Pedro e em que a compra de energia se fazia no curto prazo - completa o engenheiro Roberto Pereira Araújo, ex-diretor do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico.

Mesmo com todas as dificuldades anteriores, o socorro do BNDES não se encerrou com o episódio da AES. No fim de 2003, o banco lançou o programa de capitalização das empresas do setor elétrico, com criação de uma linha de R$ 3 bilhões para distribuidoras de energia em dificuldades. Para se enquadrar, as empresas interessadas deveriam renegociar suas dívidas com os bancos privados. Com a exigência, nenhuma empresa conseguiu pôr a mão no dinheiro.

A Light, que teve o pedido de reajuste antecipado recusado pelo Ministério da Fazenda, tenta um acordo com os bancos para se habilitar a R$ 700 milhões. A Eletropaulo, que já fez parte de acordo anterior, também tenta se habilitar a outros R$ 700 milhões, assim como o Grupo Rede, que sonha com R$ 100 milhões.

Assim que assumiu, Carlos Lessa repetia aos quatro ventos que alguns esqueletos foram deixados pela gestão passada, entre os quais Eletropaulo.

- O processo de privatização foi muito açodado. A venda de algumas empresas do setor elétrico ocorreu antes mesmo da criação da agência reguladora (a Aneel foi criada em 1997, a privatização da Light, por exemplo, ocorreu em 1996) - opina Lessa, que por sua vez justifica a negociação com a AES.

Para o economista Armando Castelar, do Instituto de Economia Aplicada (Ipea), a eficácia das empresas privadas frente às estatais era motivo de sobra em favor da privatização das empresas do setor elétrico.

- Todas seriam privatizadas, tanto as distribuidoras quanto as geradoras. Mas, como as distribuidoras deviam altas somas às geradoras, seria mais difícil começar pela geração, daí optou-se pela distribuição - explica Castelar.

Segundo seus cálculos, as distribuidoras estatais geraram perdas de até US$ 26 bilhões ao Tesouro.

- O problema do setor não tem nada a ver com a privatização e, sim, com o racionamento, que reduziu a demanda de um segmento com altos custos fixos - palpita.