Correio Braziliense, n. 20626, 12/11/2019. Mundo, 12

A longa marcha do caos à estabilidade

Rodrigo Craveiro


Aos gritos de “Agora, sim, guerra civil” e armados com pedaços de madeira, indígenas simpatizantes do presidente demissionário Evo Morales marcharam, ontem, pelos 2km que separam El Alto de La Paz. Até o fechamento desta edição, confrontos entre os aimarás e a polícia tinham deixado pelo menos 20 feridos. Informações não confirmadas também citavam dois mortos. Depois de advertir que os líderes opositores Carlos Mesa (leia entrevista na página 13) e Luis Fernando Camacho, aos quais chamou conspiradores, “entrarão para a história como racistas e golpistas”, Morales fez um apelo aos apoiadores. “Peço ao meu povo, com muito carinho e respeito, para cuidarem da paz e não cairem na violência de grupos que buscam destruir o Estado de direito. (…) Faço um chamado urgente para resolver qualquer diferença com diálogo e concertação”, declarou, por meio do Twitter.

No prédio da Assembleia Legislativa Plurinacional da Bolívia, os 36 senadores e 160 deputados começavam uma marcha do caos à esperança. Com a promessa de vencer o vácuo de poder, depois da renúncia de Morales; do vice, Álvaro Garcia Linera; e dos líderes da Câmara e do Senado, os parlamentares se firmam na Constituição, a fim de garantir o respeito à linha sucessória.

Jeanine Añez Chavez, segunda vice-Presidente do Senado e futura presidente interina (pela ordem constitucional), afirmou que convocará eleições para que “em 22 de janeiro já tenhamos um presidente eleito”. “Vamos convocar eleições com personalidades comprovadas, que realizem um processo eleitoral que reflita o desejo e o sentimento de todos os bolivianos”, disse.

Proteção

No fim da tarde de ontem, o chanceler mexicano, Marcelo Ebrard, revelou que Morales lhe telefonou e “solicitou, formal e verbalmente, asilo político em nosso país”. “Nos termos da legislação vigente, a chancelaria mexicana (…) decidiu conceder asilo político ao senhor Evo Morales, por razões humanitárias e em virtude da situação de urgência que enfrenta na Bolívia, onde sua vida e sua integridade correm perigo”, declarou, ao instar o Senado a respaldar a decisão. Rumores indicavam que o ex-presidente boliviano poderia embarcar rumo à Cidade do México ainda na noite de ontem.

Em comunicado à imprensa, a Organização dos Estados Americanos (OEA) sublinhou que, ante a crise política e institucional na Bolívia, “rechaça qualquer saída inconstitucional para a situação”. “A Secretaria  Geral chama à pacificação e o respeito ao Estado de direito. Nesse sentido, a Secretaria Geral solicita que, de forma  urgente, se reúna a Assembleia Legislativa Plurinacional da Bolívia para os efeitos de assegurar o funcionamento institucional e nomear novas autoridades eleitorais que garantam um novo processo eleitoral”, afirma.

A OEA se reunirá em Washington, às 15h de hoje (17h em Brasília), em caráter extraordinário, para debater o assunto. A sessão foi convocada a pedido de Brasil, Canadá, Colômbia, Estados Unidos, Guatemala, Peru, República Dominicana e Venezuela.

Especialistas

“Estou me resguardando. Há muita violência. Falemos em duas horas, por favor”, disse ao Correio Marcelo Arequipa, professor de ciência política da Universidade Católica Boliviana San Pablo (em La Paz). Após insistência da reportagem, ele qualificou o cenário de violência como “muito forte”. “Há um vazio de poder, pois o presidente renunciou e toda a linha de sucessão constitucional o seguiu. O nível de violência é enorme em algumas cidades”, lamentou. “Além de saques, algumas pessoas ateiam fogo em residências. As forças policiais foram reduzidas, e grupos mobilizados estão se enfrentando. Isso é boliviano contra boliviano. Há relatos de trocas de tiros em El Alto”, acrescentou. Ontem, Yuri Calderón, chefe da polícia boliviana, também abandonou o posto.

Arequipa vê com ceticismo a disposição da senadora Jeanine Añez de comandar a transição. “Ela convocou uma sessão parlamentar para amanhã (hoje). No entanto, o MAS tem o controle de dois terços do Legislativo. Não sei se o MAS permitirá que se sancione essa sessão da Assembleia e que Jeanine seja declarada presidente”, comentou.

Por sua vez, Yerko Ilijic Crosa, professor de direitos humanos da mesma universidade, acredita que os congressistas do MAS não terão escolha a não ser aceitar Jeanine como presidente. “É uma questão de sobrevivência política. Há uma espécie de divórcio interno entre o partido e Morales. Há dois setores corporativos de apoio ao MAS e a Morales, que, em sua organização, atuam com intimidação e extorsão. Um deles é o sindicato de motoristas de transporte privado, inimigos do governo da cidade de La Paz. O outro é o Sindicato de Conselhos de Bairros em El Alto”, explicou. “A ideia de atacar em La Paz e em El Alto é advertir que, mesmo sem Morales, eles são capazes de manter a pressão.”

Marcha em apoio a Evo na Argentina

Dezenas de milhares de pessoas marcharam no centro de Buenos Aires para expressar seu apoio ao ex-presidente da Bolívia Evo Morales. “Evo não está sozinho, Evo não está sozinho”, gritavam manifestantes do lado de fora da sede da embaixada boliviana na Argentina, a 400m do Obelisco de Buenos Aires. Professores, funcionários públicos, grupos políticos, organizações sociais da Argentina e imigrantes bolivianos participaram da marcha, que ocorreu sem incidentes, enquanto agitavam bandeiras da Bolívia e dos povos nativos. Deputados da oposição argentina anunciaram uma sessão especial, hoje, para “repudiar o golpe na Bolívia exigindo proteção física para Evo (Morales), Álvaro (García Linera, ex-vice-presidente) e outros líderes do MAS”, postou no Twitter o legislador Agustín Rossi, do peronista Frente de Todos. O ex-ministro de Governo Carlos Romero e a ex-ministra do Planejamento Mariana Prado estão refugiados na Embaixada da Argentina, em La Paz, por motivos humanitários.

Eu acho...

“O que deveria ocorrer era um pacto político e institucional, encabeçado pelas forças políticas de oposição do Parlamento e pelo candidato Carlos Mesa, que ficou em segundo lugar nas eleições. São eles que têm de dar viabilidade institucional ao vácuo de poder e reduzir a tensão.”

Marcelo Arequipa, doutor em ciência politica e professor da Universidade Católica Boliviana de La Paz

Bastidores

A carta de renúncia “obrigada”

“Hoje, 10 de novembro, os humildes, os trabalhadores, os aimarás e quéchuas e indígenas das terras baixas começamos o longo caminho da resistência, para defender os históricos do primeiro governo indígena que termina hoje, com minha renúncia obrigada à presidência do Estado Plurinacional da Bolívia, produto de um golpe de Estado político cívico policial”, afirmou o presidente Evo Morales em sua carta de renúncia, entregue ontem ao Congresso. Na mensagem, ele sublinhou que sua responsabilidade, como presidente indígena e de todos os bolivianos, “é evitar que os golpistas sigam perseguindo meus irmãos e minhas irmãs dirigentes sindicais, maltratando e sequestrando seus familiares, queimando casas de governadores”.

Solidariedade internacional

Evo Morales recebeu, ontem, manifestações de apreço vindas do Brasil e da Argentina. Em tuíte, a ex-presidente brasileira Dilma Rousseff afirmou manifestar “total solidariedade ao presidente legítimo da Bolívia, Evo Morales, que foi destituído por um golpe militar, teve a casa invadida pela polícia e sofreu um mandado de prisão ilegal”. “Um atentado gravíssimo à democracia na América Latina e uma violência contra o povo boliviano”, escreveu. O argentino Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz em 1980, classificou “o golpe de Estado na Bolívia como um atentado contra todas as democracias do mundo”. Segundo ele, governos de direita são “cúmplices do ocorrido” por se mostrarem “incapazes de conviver com uma Bolívia justa, educada e soberana”.

Recado à Venezuela

Ao saudar a queda de Evo Morales, o presidente dos EUA, Donald Trump, avaliou o desdobramento político como um sinal para regimes “ilegítimos” e elogiou os militares. “Esses eventos enviam um forte sinal aos regimes ilegítimos da Venezuela e da Nicarágua de que a democracia e a vontade do povo sempre prevalecerão”, disse.