Correio Braziliense, n. 20624, 10/11/2019. Política, p. 4

30 anos de uma democracia

Alessandra Azevedo
Luiz Calcagno
Jorge Vasconcellos


O Brasil comemora, nesta semana, 30 anos da retomada do voto direto para presidente da República. O direito de livre escolha da população foi restabelecido depois de 21 anos de ditadura militar (1964-1985) e de um governo civil eleito indiretamente, o que impulsionou a redemocratização. O retorno às urnas foi sob a égide de uma nova Constituição, promulgada no ano anterior. Mas, após três décadas, essa jovem democracia enfrenta o desafio de se manter viva.

Todos queriam participar da corrida presidencial de 1989, de políticos a eleitores, que assistiam aos debates como “se fosse novela das oito”, diz Guilherme Afif Domingos, um dos 22 candidatos à Presidência da República em 1989, pelo PL. Na avaliação dele, uma das principais semelhanças em relação a 2019 foi a fraca participação das grandes legendas.

“Isso se mostrou um retumbante fracasso. A máquina não funcionou, o que funcionou foi o produto”, lembra Afif. Em 15 de novembro de 1989, o então governador de Alagoas, Fernando Collor de Mello, filiado ao PRN, foi eleito diretamente pelos brasileiros para governar o país. Em um corrida com 22 candidatos, venceu, no segundo turno, Luiz Inácio Lula da Silva, líder do PT, em extrema polarização política.

Para o cientista político Lúcio Rennó, da Universidade de Brasília (UnB), tanto em 1989 quanto em 2018 o cenário era propício para a ascensão de alguém de fora do sistema, que representasse o novo, tolerável para o sistema produtivo e com agenda voltada para a modernização econômica.

Collor encarnava a renovação. Mas, três anos depois, renunciou ao mandato e um processo de impeachment no Senado suspendeu seus direitos políticos. O hoje senador Collor (PROS-AL) também vê semelhanças entre seu governo e o de Bolsonaro.

“Certos episódios e eventos me deixam muito preocupado. Talvez não cheguemos a um bom termo sobre o mandato mal exercido pelo presidente da República — a começar por essa falta de interesse em construir uma base sólida de sustentação no parlamento”.

Bolsonaro conquistou a Presidência empunhando bandeiras semelhantes às de Collor, em 1989. O capitão reformado se apresentou com as promessas de combate à corrupção e de renovação política. Foi eleito da mesma forma que o hoje senador, em meio a uma forte polarização política, crise econômica e vencendo, também, em segundo turno, um petista, Fernando Haddad. Em mais uma semelhança com 30 anos atrás, enfileira desafetos políticos.

Momento político

O cientista político Jairo Nicolau, da Fundação Getulio Vargas (FGV), não vê tantas semelhanças entre os pleitos de 2018 e 1989, embora reconheça que a campanha do ano passado também mudou as estruturas da política por não ter sido disputada entre PT e PSDB. “Por isso, se fez analogia com 1989. Os partidos tradicionais também enfrentaram dificuldades e não tinham candidato governista competitivo”.

Segundo ele, em 1989 eram fortes os componentes de empolgação e de envolvimento; em 2018, o cenário foi de “dramas, atentados e prisões”. “As crises dos últimos anos resultaram em raiva e de polarização”.

O cientista político Ricardo Ismael, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, concorda com Jairo, mas aponta uma semelhança: a falta de importância que Bolsonaro dá a uma base estável. “Collor também tinha um discurso de ‘faz e acontece’, como se não precisasse das instituições”.

Âncora econômica

Nos últimos 30 anos, o cenário econômico mudou mais do que o político, avaliam especialistas. Mas os problemas que levam às dificuldades de a economia deslanchar, agora, são outros: se em 1989 a hiperinflação assustava, em 2019 há a necessidade de um ajuste fiscal.

A situação de hoje, para o economista José Ronaldo Souza Júnior, diretor de Estudos e Políticas Macroeconômicas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), é completamente diferente daquela de 1989. O problema mais óbvio, lembra, era a inflação, que chegou a quatro dígitos. Já a Previdência não era considerada descontrolada em 1989. Havia mais jovens do que idosos e a expectativa de vida era de 66 anos, pelos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (chegou a 66,93 anos em 1990). Ainda assim, especialistas começavam a alertar para um futuro colapso. “Como ainda não causava efeito, nada foi feito”, diz José Ronaldo.

A partir da eleição de Collor, foi iniciado um processo de abertura, complementado pelos governos seguintes, lembra Igor Rocha, diretor Econômico da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib). Ele considera que, apesar da agenda liberal, o governo Bolsonaro ainda não mostrou a que veio: o programa de privatizações apresentou poucos resultados em 2019, e, apesar do discurso, algumas interferências do presidente na economia "assusta os investidores".

Frase

“Collor também tinha um discurso de ‘faz e acontece’, como se não precisasse das instituições”

Ricardo Ismael, cientista político da PUC-RJ, comparando as atuações do ex-presidente com a de Bolsonaro

Dois Brasis

Inflação

Na época das primeiras eleições diretas para presidente da República da redemocratização, o principal problema do país era a hiperinflação. Os índices chegavam a quatro dígitos em um ano:

1989:  1.972,91%

*2019: 2,49%

Produto Interno

Bruto (PIB)

Já o PIB, sem tantos gastos sociais e com a Constituição ainda em fase de adaptação, subia mais do que atualmente:

1989: alta de 3,16%

2018: alta de 1,12%

Índice de Gini

O principal indicador de distribuição, concentração e desigualdade econômica melhorou nos últimos 30 anos.

Os números variam de 0 (perfeita igualdade) até 1 (máxima concentração e desigualdade):

1989: 0,617

2018: 0,509

Distribuição de renda

O dinheiro também passou a ser melhor distribuído, embora ainda com muitas distorções. A porcentagem no bolso dos 10% mais ricos da população diminuiu:

1989: 48,3%

2018: 43,1%

INPC

Nas últimas três décadas, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor, mais usado em reajustes salariais, teve variação expressiva nos últimos anos:

1989: cresceu 36,3%

2019: caiu 0,05%

**Desemprego

Em 1989, estava chegando ao fim a chamada “década perdida”. Com a ligeira recuperação, o nível de desemprego estava baixo. Já em 2019, o Brasil vive um dos momentos mais difíceis no mercado de trabalho:

1989: 3,22%

***2019: 11,8%

* acumulada no ano, em 2019, até setembro   /   ** o IBGE mudou a metodologia entre os dois anos, mas essas são as mais próximas para comparação   /   *** em agosto

Fontes: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Eleições presidenciais

1989

Candidatos: 22

Eleitores aptos: 82 milhões

Votos válidos:

66,2 milhões (97,17%)

Votos em branco:

986,4 mil (1,4%)

Votos nulos:

3,1 milhões (4,42%)

Resultado final:

Fernando Collor (PRN) - 53,03%

Luiz Inácio Lula da Silva (PT) - 46,97%

2018

Candidatos: 13

Eleitores aptos: 147,3 milhões

Votos válidos:

104,8 milhões (90,43%)

Votos em branco:

2,5 milhões (2,14%)

Votos nulos:

8,6 milhões (7,43%)

Resultado final:

Jair Bolsonaro (PSL) - 55,13%

Fernando Haddad (PT) - 44,87%