Correio Braziliense, n. 20685, 10/01/2020. Economia, p. 6

Dragão domado

Rosana Hessel
Catarina Loiola



Apesar do impulso no fim do ano devido à escalada dos preços da carne, a inflação não deverá ser uma ameaça para a retomada do crescimento da economia brasileira em 2020, na avaliação de especialistas ouvidos pelo Correio. Contudo, eles admitem que as tensões entre os Estados Unidos e o Irã são um risco. Se elas aumentarem e pressionarem mais fortemente os preços do barril de petróleo, o cenário de estabilidade do custo de vida pode mudar. Todavia, ainda é cedo para mudar as projeções.

Por enquanto, as estimativas do mercado e do Banco Central são de que o Índice de Preços ao Consumidor (IPCA), que mede a inflação oficial, devem ficar dentro das metas estipuladas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), que são decrescentes. Passam de 4%, neste ano, para 3,75%, em 2021, e para 3,50%, em 2022.

A mediana das previsões do mercado indica crescimento de 2,3% do Produto Interno Bruto (PIB) neste ano e de 2,5%, nos dois anos seguintes. Enquanto isso, o IPCA ficará em 3,60% em 2020, em 3,75%, em 2021, e em 3,50%, em 2022.

Um dos motivos apontados pelos analistas para que a inflação fique dentro das metas é a mudança recente na metodologia de cálculo do IPCA, que reduziu o peso dos alimentos no indicador e aumentou o do grupo transportes, onde combustíveis estão incluídos. "Nesse caso, como alimentos terão um peso menor, o petróleo é o fator de risco para o aumento da inflação", alerta o economista Antonio Madeira, da LCA Consultores.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) atualizou os hábitos de consumo das famílias brasileiras no IPCA com base da Pesquisa Orçamentária Familiar (POF) de 2017-2018. A partir deste ano, uma série de itens que não fazem mais parte do consumo da população, como videocassete, locadora de vídeo e telefone público, saem do índice. Em contrapartida, entram itens da nova tecnologia, como streaming de vídeo e de música e transporte por aplicativo.

Pesos

Outra mudança ocorreu no peso dos grupos que compõem o indicador. O do grupo alimentação foi reduzido de 22,1% para 19%. O de transportes passou a ser o mais relevante na contabilização do custo de vida, apesar de uma leve redução, passando de 21,9% para 20,8%.

Os serviços das novas tecnologias incluídos no IPCA pesam bem menos do que a gasolina no orçamento das famílias. O agropecuarista Davi Rodrigues, 24 anos, possui quatro assinaturas mensais de plataformas de streaming, que, ao todo, representam 5% de sua renda. O que mais afeta seu planejamento financeiro é a gasolina, que consome 40% dos rendimentos mensais. "Os preços, principalmente da gasolina, variam muito, o que acaba atrapalhando um pouco nas despesas do mês. Mas, em relação aos streamings, os preços são bastante estáveis e raramente ocorre reajuste. Quando ocorre, não é algo tão absurdo para mudar meus hábitos de consumo", relata.

Na ausência de uma forte alta do petróleo e dos combustíveis, a atualização da POF ajudará o Banco Central (BC) no controle da inflação neste ano. Para o economista-chefe da MB Associados, Sergio Vale, a forte alta no preço da carne aconteceu "no momento certo", porque os novos pesos da POF no IPCA vão ajudar para que a inflação de alimentos não seja tão relevante em 2020 como seria no modelo antigo.

Pelas estimativas do BC, a nova metodologia deverá reduzir em 0,3 ponto percentual as estimativas do IPCA. Por conta dessa ajuda da POF, algumas instituições ainda apostam em novos cortes da taxa básica de juros, a Selic, que poderá cair para 4,25% ou mesmo 4% ao ano. Contudo, qualquer pressão externa, como a da crise entre EUA e Irã pode atrapalhar as previsões daqui para frente. Logo, com um cenário de meta de inflação em queda, o BC precisará ser cauteloso.

Juros

"A inflação ficará controlada em 2020, mas, nos próximoa anos, com a meta cada vez menor, será preciso ter juros mais altos para conter os índices", alerta Sergio Vale. "A boa notícia é de que a Selic não precisará voltar a dois dígitos. Estamos falando em uma alta moderada de juros para conter a piora da expectativa inflacionária", explica.

Outro risco que precisa ser considerado é o de que não há consenso entre especialistas de que os preços da carne devem arrefecer neste ano. No Banco Central, a expectativa é de que o impacto da alta do produto já tenha sido absorvido totalmente no fim de 2019. O economista Bruno Lucchi, superintendente técnico da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), ressalta que a tendência é de que a demanda pela carne continue elevada neste ano. "Houve um aumento do consumo doméstico da proteína, que não está associado apenas às festas de fim de ano. Com o crescimento do PIB e a elevação da renda da população, a tendência é de o consumo aumentar", destaca.

Vale, da MB Associados, também prevê que a inflação das carnes, "deve permanecer por dois a três anos", mas não na mesma magnitude do fim de 2019. "As exportações para a China devem continuar em alta, porque a peste suína africana provocou queda de 40% da produção chinesa, e isso não vai ser revertida rapidamente", explica. "Essa queda é maior do que a soma de todo o comércio de carne no mundo. É muita coisa. Não tem como suprir essa demanda."

Impacto maior para mais pobres

Apesar de a inflação oficial se mostrar controlada, a carestia pesa mais no bolso dos mais pobres, que têm enfrentado aumento mais acelerado do custo de vida. Conforme dados da Fundação Getulio Vargas (FGV), o Índice de Preços ao Consumidor — Classe 1 (IPC-C1), que mede a alta de preço dos produtos consumidos pela população com renda familiar de até 2,5 salários mínimos, disparou em dezembro, chegando perto de 1% e acumulando alta de 4,60% em 2019. A taxa anual ficou acima da média do IPC nacional, de 4,11%.

O economista André Braz, coordenador do IPC do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre-FGV), destaca que a alimentação é o item que mais pesa nas despesas das famílias de baixa renda, chegando a 31,3% do orçamento. “A contribuição desse item no custo de vida foi gigante, e o IPC só não ficou acima de 1% porque houve uma queda de 0,96%, em dezembro, nos custos do grupo habitação”, explica.  Segundo ele, o grande vilão do pico inflacionário do fim de 2019 foi a carne, que chegou a subir 16% no ano.

A copeira Cristina Neres, 38 anos, precisou adequar o consumo à redução da renda familiar após o marido perder o emprego, mas não abriu mão da carne, apesar da alta dos preços. “Continuo comendo carne do mesmo jeito, mas diminuímos os gastos em geral”, afirma. “Espero que, no ano que vem, a economia melhore, que o governo estenda mais trabalhos para a população e diminua os preços das coisas para que a gente possa manter a família de uma forma melhor.”
Promoções

A carne também pesou no orçamento da manicure Rebeca de Oliveira, 39. Ela conta que diminuiu o consumo  do produto e recorrer a outros itens, como congelados, ovos e frango. “Tudo aumentou muito de preço de outubro até agora. O final de ano foi um dos mais caros que já vi”, afirma. Ela conta que prefere comprar em mercados que fazem promoções do que em feiras ou atacadistas.

Para Braz, as atualizações no perfil de consumo da POF são positivas para uma melhor apuração do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). “O ideal é que o período de atualização da POF fossem mais frequentes, porque as grandes mudanças no orçamento das famílias estão relacionadas aos  padrões de consumo, que são muito dinâmicos quando a renda melhora”, explica. Para ele, o grande desafio para conter a inflação na meta este ano será o controle dos preços administrados — aqueles cujos reajustes dependem de autorização do governo —, que tendem a subir mais.  (RH e CL)