Correio Braziliense, n. 20689, 14/01/2020. Mundo, p. 10

Irã sob pressão por todos os lados



O Irã lida com a onda de insatisfação interna, deflagrada pela confissão de que as Forças Armadas do país derrubaram o Boeing da Ukraine Airlines, na semana passada, sem perder de vista o enfrentamento com os Estados Unidos. Ontem, no terceiro dia consecutivo de protestos populares, o governo iraniano negou que tenha mentido ou tentado “acobertar” as responsabilidades pela tragédia com o voo PS 572, que matou todas as 176 pessoas a bordo. E reagiu ao apoio que o presidente americano, Donald Trump, tem dado aos manifestantes. “Lágrima de crocodilo”, classificou o porta-voz Ali Rabiei, ao comentar os tuítes do chefe da Casa Branca.

Segundo vídeos que circulavam, ontem, nas redes sociais, as forças iranianas dispararam bombas de gás lacrimogêneo e teriam usado de violência, na noite da véspera, para dispersar protestos contra o governo. A mobilização popular começou no sábado, logo após o governo admitir — após três dias de negativa — que a aeronave foi abatida por um míssil disparado “por engano”, enquanto a defesa do país estava em alerta de “guerra” por medo de um ataque americano.

Em um dos vídeos, uma mulher parece ter caído na calçada, manchada de sangue e é levantada por várias pessoas, algumas das quais gritam “ela foi baleada”. Em outros, publicados como imagens de uma manifestação na cidade de Amol, junto ao Mar Cáspio, se pode ver uma multidão desfilando nas ruas aos gritos de “não queremos a República Islâmica”. As agências internacionais de notícias não conseguiram, porém, verificar a autenticidade dos vídeos.

Em sua conta oficial no Twitter, Trump exaltou os manifestantes. “O governo do Irã deve permitir que os grupos de Direitos Humanos monitorem e relatem os fatos sobre os protestos em curso do povo iraniano. Não pode haver outro massacre de manifestantes pacíficos, nem um apagão da internet. O mundo está atento”, escreveu, em inglês e em farsi. Elogiou ainda o fato de que “os maravilhosos manifestantes iranianos se recusaram a pisar, ou denegrir de alguma forma, nossa grande bandeira americana”.

Também a Alemanha pediu ao Irã que permita a realização de “protestos de forma pacífica e livre”. A porta-voz do Ministério alemão das Relações Exteriores, Maria Adebahr, classificou como “muito preocupantes” as imagens de vídeo, nas quais se vê as forças de segurança iranianas reprimindo a multidão.

O chefe da Polícia de Teerã declarou que recebeu ordens de agir com “moderação” durante as manifestações. “A polícia tratou as pessoas que se concentraram com paciência e tolerância. A polícia não disparou durante as manifestações, porque foram dadas ordens de moderação aos policiais da capital”, disse o general Hossein Rahimi, citado pela televisão estatal.

Investigação

Na tentativa de aplacar os ânimos da população, o governo se defendeu da tese de premeditação. “Nesses dias de tristeza, houve críticas aos responsáveis e às autoridades do país. Alguns responsáveis foram, inclusive, acusados de mentir e de tentar acobertar o ocorrido, quando, sincera e honestamente, esse não foi o caso”, disse Ali Rabii.

“A verdade é que não mentimos. Mentir é disfarçar a verdade de maneira intencional e consciente. Mentir é acobertar informações. Mentir é conhecer um fato e não dizê-lo, ou deformar a realidade”, acrescentou o porta-voz.

Segundo ele, a posição manifestada inicialmente pelo governo estava baseada em informações que desvinculavam os ataques a bases usadas por americanos no Iraque, em resposta ao assassinato de Qassem Soleimani, à queda do avião. Em conversa com o primeiro-ministro sueco, Stefan Lofven, o presidente iraniano, Hassan Rohani, prometeu uma “exaustiva investigação” sobre o desastre aéreo, conforme anúncio feito por sua assessoria.

Frase

“A verdade é que não mentimos. Mentir é disfarçar a verdade de maneira intencional e consciente. Mentir é acobertar informações. Mentir é conhecer um fato e não dizê-lo, ou deformar a realidade”

Ali Rabiei, porta-voz do governo iraniano

Iraque teme colapso econômico

A ameaça de imposição de “sanções como nunca vistas” feita pelo presidente norte-americano, Donald Trump, tem preocupado autoridades iraquianas. Há um temor de que o país sofra um colapso econômico, especialmente se for adotado o bloqueio ao acesso à conta no Federal Reserve (Fed), em Nova York, onde estão as receitas provenientes do petróleo. A commoditie representa 90% do orçamento estatal do Iraque.

Segundo fontes ouvidas pela agência France-Presse de notícias (AFP), Washington enviou uma mensagem direta ao gabinete do primeiro-ministro Adel Abdel Mahdi  informando que, se as tropas americanas forem expulsas, a conta será  bloqueada. “Somos um país produtor de petróleo. Essa conta está em dólares. Impedir o acesso a ela significa fechar completamente a torneira”, disse uma autoridade iraquiana. Um segundo responsável alertou que, com a medida, o governo não conseguirá pagar despesas diárias e salários.

A decisão de expulsar forças militares estrangeiras foi anunciada pelo Parlamento no último dia 5, dois dias depois de um drone dos Estados Unidos matar uma dúzia de pessoas em Bagdá, incluindo o general iraniano Qassem Soleimani e seu braço direito no Iraque, Abu Mahdi al-Muhandis. Nesse contingente, há 5.200 militares americanos, que ajudam, desde 2014, soldados locais a combaterem extremistas.

De acordo com o secretário americano de Estado, Mike Pompeo, líderes iraquianos lhe confessaram que aceitam a presença das tropas americanas no seu país, apesar de declararem oficialmente o contrário. “Não admitirão publicamente, mas em particular todos celebram o fato de os Estados Unidos permanecerem lá executando sua campanha contra o terrorismo.”  Pompeo ressaltou ainda que as tropas americanas são um apoio fundamental para que o Estado Islâmico (EI) não volte e “dão a oportunidade para que os iraquianos tenham a soberania e a independência que a maioria deseja”.

'' Tentativa de politizar '' 

Segundo maior produtor na Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), o Iraque teve, em 2019, um orçamento estatal de US$ 112 bilhões. A conta no Fed foi aberta em 2003, após a invasão militar dos Estados Unidos que tirou Saddam Hussein do poder. Conforme a Resolução 1.483 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que diminuiu as sanções e o embargo do petróleo imposto ao Iraque depois da decisão de Saddam de invadir o Kuwait, todos os recursos provenientes das vendas de petróleo do Iraque devem ir para essa conta.

O Federal Reserve se recusou a comentar as ameaças de Trump a esse respeito. Uma fonte do Departamento de Estado relatou à AFP que “a tentativa de politizar as remessas em dólares preocupa o banco, pois afeta seu prestígio e integridade, no relacionamento diário com os clientes”. Os planos de Washington são de “restringir” o acesso a “um terço” da liquidez “que normalmente envia” a Bagdá. Hoje, a conta totaliza cerca de US$ 35 bilhões.