O Globo, n. 31548, 22/12/2019. Mundo, p. 42

Especial GDA, personagens 2019: Greta Thunberg
Felipe Ramos Hajna
Benjamín Torres Gotay


No dia 23 de setembro, Greta Thunberg encerrava seu discurso de não mais de 500 palavras diante do plenário das Nações Unidas. Nas arquibancadas, líderes mundiais observavam amenina de apenas 16 anos que se tornou o maior ícone da luta contra as mudanças climáticas.

— Eles estão fracassando conosco. Mas os jovens estão começando a entender sua traição. Os olhos de todas as gerações futuras estão sobre vocês. Não vamos deixá-los continuar com isso. Bem aqui, agora, é onde traçamos a linha. O mundo está acordando. E a mudança está chegando, gostem ou não — afirmou Greta.

Sua determinação chamou a atenção para as mudanças climáticas, uma conquista de dimensões planetárias que fez com que Greta fosse escolhida “Personagem Mundial 2019” pelo Grupo de Diários América (GDA), uma aliança de 11 jornais da América Latina, da qual O GLOBO faz parte.

Um ano antes, em 20 de agosto de 2018, a mesma adolescente decidiu não ir à escola para se sentar do lado de fora do Parlamento sueco e protestar contra o que considerava o pouco progresso na redução da emissão de carbono em seu país. Com uma placa que dizia Skolstrejk för klimatet (“Greve pelo clima”), essa garota pequena, de rosto sério e diagnosticada com síndrome de Asperger enfrentou um assunto que muitos cientistas e ativistas haviam notado, mas poucos estavam dispostos a propor soluções. Foi tal o impacto que, duas semanas depois, ela fez seu primeiro discurso em público, algo que surpreendeu até seus pais, já que ela sofre de mutismo seletivo, o que não a impediu de se apresentar em 2019 em frente ao Fórum de Davos, em uma comissão do Senado dos EUA, no plenário da ONU ena COP25, em Madri.

Nascida na Suécia, em 3 de janei rode 2003, filhada soprano M alena Ernm anedo atore escritor Svante Thunberg, desde pequena Greta era uma menina introvertida. Aos 8 anos, viu um documentário sobre mudanças climáticas e ficou tão chocada que isso causou uma profunda depressão.

— Eu penso demais. Algumas pessoas podem deixar as coisas acontecerem, mas eu não, especialmente se há algo que me preocupa ou me deixa triste — disse ao jornal inglês The Guardian.

Para Eloisa Silva, consultora de sustentabilidade e membro da rede de Iniciativa de Jovens Líderes das Américas ,“o‘ fenômeno Greta’ é uma combinação de um momento histórico, em que o status quo está sendo questionado em todas as esferas, e vozes fortes surgem com o movimento feminista”.

— Greta, sendo uma dessas vozes, pede mudanças claras e apela à ética das autoridades. Ela não tem medo, nem outra agenda além de representar o movimento social —disse.

Fenômeno e ‘pirralha’

Sua determinação levou milhões de pessoas às ruas para se juntar à Sexta-feira pelo Futuro, enquanto outras aderiram ao flygskam ou “vergonha de voar”, que busca que as pessoas passem a usar meios de transporte menos poluentes.

Ainda que tenham existido ativistas de peso que alertaram sobre as mudanças climáticas, o grande salto de Greta está na maneira como fala, e que muitos atribuem ao fato de ter Asperger, o que faz com que não se distraia com os interesses sociais próprios da idade.

Não foram poucas as vozes que a atacaram. Em julho, a Opep a declarou “a maior ameaça” à indústria de combustíveis fósseis, enquanto o presidente dos EUA, Donald Trump, tuitou sarcasticamente que “ela parece ser uma garota muito feliz” e Jair Bolsonaro a chamou de “pirralha”. No primeiro, ela considerou a crítica como “um elogio”, enquanto as palavras de Trump e de Bolsonaro se tornaram sua biografia no Twitter.

A gota d’água que mudou o curso em Porto Rico

Em 22 de julho, uma multidão estimada em 500 mil pessoas paralisou a principal via da capital, San Juan, exigindo a renúncia do então governador Ricardo Rosselló. Foi o clímax da onda de protestos que assolou Porto Rico por 15 dias e alcançou algo nunca visto nessa ilha de 3,2 milhões de habitantes: a renúncia de um governador, dois dias depois. O fato levou os "Manifestantes de Porto Rico" a serem escolhidos o Personagem Regional de 2019 pelo GDA.

O que levou um povo geralmente paciente a sair às ruas? Foi a gota d'água. Porto Rico já vinha recebendo golpes havia algum tempo. Mais de dez anos de recessão. Quase metade da população abaixo da linha de pobreza. Um dos mais altos níveis de desigualdade do mundo. Emigração em massa de cerca de 10% da população em menos de dez anos. Serviços públicos inutilizáveis.

Tudo se complicou em 20 de setembro de 2017. O furacão Maria, o mais forte a atingir a ilha em um século, destruiu Porto Rico. A resposta do governo local e dos EUA foi desastrosa. Comunidades tiveram que se reerguer por conta própria. Alguns locais não recuperaram o serviço elétrico até 11 meses depois. O governo levou quase um ano para reconhecer que quase 3 mil pessoas morreram.

A gota d'água veio em julho de 2019, quando começaram a surgir capturas de tela de uma conversa no Telegram entre Rosselló e seu círculo mais próximo nas quais ele insultava jornalistas e adversários.

Em 10 de julho, foram presos por corrupção ex-chefes das agências de Educação e Saúde Pública. Nesse dia, houve o primeiro protesto. Em 13 de julho, já era um terremoto. O Centro de Jornalismo Investigativo de Porto Rico postou 889 páginas do bate-papo. Havia indícios de corrupção.

Artistas como Ricky Martin e Benicio del Toro se uniram às marchas. Após a passeata de 22 de julho, a maior da História de Porto Rico, Rosselló entrou em contagem regressiva. Na noite de 24 de julho, o 11° governador do Estado livre associado de Porto Rico, através de uma mensagem no Facebook, renunciava ao cargo.