O Estado de S. Paulo, n. 46888, 03/03/2022. Notas & Informações, p. A3

Perigo real e imediato


 

Para muita gente, no Brasil e no mundo, os riscos associados às mudanças climáticas induzidas pelo homem ainda são percebidos como um tema distante, restrito a fóruns internacionais, universidades, organizações não governamentais e setores da imprensa. É compreensível que seja assim, particularmente em países como o Brasil, que reúnem enorme contingente de cidadãos que têm entre suas preocupações principais encontrar um trabalho, mantê-lo e garantir comida na mesa. É muito difícil pensar em crise climática, ou em qualquer outro assunto, quando se está premido pela fome. Mas, como a pandemia de covid-19 tristemente lembrou a todos, a natureza se impõe sem ponderações. Os efeitos das mudanças climáticas estão cada vez mais próximos de nós e, além de criarem novos problemas para a humanidade, aprofundarão mazelas já existentes.

Metade da população mundial (3,6 bilhões de pessoas), nada menos do que isso, está sob ameaça direta dos efeitos mais nocivos das mudanças climáticas, como enchentes, deslizamentos de terra, secas, ondas de frio e de calor excessivos, insegurança alimentar e crises migratórias, entre outros. Foi o que apontou o mais recente Painel Intergovernamental sobre o Clima (IPCC), relatório divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU) no dia 28 de fevereiro. O objetivo da ONU ao produzir e divulgar esse documento é avaliar as vulnerabilidades naturais e socioeconômicas dos países às mudanças climáticas, antevendo seus possíveis impactos locais e regionais e, principalmente, propondo medidas de prevenção ou adaptação a fim de mitigar riscos.

No que concerne ao Brasil, o IPCC aponta risco de queda importante na produção agrícola, o que pode aumentar ainda mais o número de brasileiros que vivem em insegurança alimentar. O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil 2021, também realizado pela ONU, apurou que há 116,8 milhões de brasileiros (55% da população) que já convivem com algum grau de insegurança alimentar. Destes, 43,4 milhões não têm alimentos em quantidade diária suficiente e 19 milhões de brasileiros convivem com a fome. Fato é que isso nada tem a ver com escassez de alimentos, mas falta de renda. As mudanças climáticas, portanto, agravarão esse problema.

Vale lembrar que, no início deste ano, uma seca e uma onda de calor sem precedentes recentes arrasaram lavouras nas Regiões Sul e Centro-Oeste, provocando um prejuízo de cerca de R$ 45 bilhões para o agronegócio. As culturas de soja e milho foram as duas mais afetadas, justamente os principais grãos da pauta de exportações do País. Especialistas em clima foram taxativos ao atribuir esses fenômenos às mudanças climáticas.

A degradação da Região Amazônica se ampliará com os efeitos negativos das mudanças climáticas provocadas pelo homem, com reflexos em todo o País. O IPCC aponta ainda para o risco de uma crise humanitária decorrente da migração das populações da Região Nordeste mais afetadas por eventos climáticos extremos, como secas e inundações cada vez mais frequentes.

Essa é a dura realidade do País, tal como está posta. Tão pior ficará se o governo brasileiro, de uma vez por todas, não der às mudanças climáticas a devida importância que o problema tem, a começar por dar credibilidade a um documento como o IPCC. Para o cidadão que está mais preocupado em levar comida para casa do que com as mudanças climáticas, há perdão. Para um governo negligente, malgrado ter acesso a toda informação disponível e poder de decisão, não há. “Abdicar da liderança é criminoso”, advertiu o secretário-geral da ONU, António Guterres.

A essa altura, é evidente que não se pode esperar nada do presidente Jair Bolsonaro, alguém que enxerga os alertas científicos sobre os riscos ambientais como “a mesma xaropada de sempre”. Portanto, a medida mais urgente que o País tem de adotar para impedir ou mitigar os efeitos das mudanças climáticas é não reeleger Bolsonaro. Sua estupidez orgulhosa e seu desdém por questões relacionadas à proteção do meio ambiente, mais do que levar o Brasil à condição de pária internacional, representam perigo real e imediato para os brasileiros mais vulneráveis.