Título: Luta durante os 365 dias do ano
Autor: Mariana Filgueiras
Fonte: Jornal do Brasil, 08/03/2005, Rio, p. A13

O inimigo dorme ao lado. A constatação, que mais parece título de filme, é uma contundente realidade para boa parcela da população feminina do Brasil, vítima da violência doméstica. Essas mulheres têm o dia-a-dia marcado por uma relação conflituosa de quem dorme e acorda com o agressor, na própria cama, sob o mesmo teto. Mas quantas são essas mulheres? Difícil saber, pela amplitude e complexidade da questão. Estima-se que apenas 20% dos casos de violência contra a mulher cheguem aos registros oficiais. No Estado do Rio, constata-se um aumento das idas às Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Deam) e a outros organismos públicos especializados em atendimento à mulher vítima de violência psicológica, sexual ou física, como o Centro Integrado de Atendimento à Mulher (Ciam) e o S.O.S. Mulher.

Os dados da Secretaria de Segurança Pública revelam que a maior incidência de violência contra a mulher está registrada na Deam Oeste, com 6.684 casos. Em seguida vêm Rio, com 5.537; Nova Iguaçu, com 4.119; São Gonçalo, com 4.099; Jacarepaguá, com 2.604; Caxias, com 2.412; Niterói, com 2.184; Volta Redonda, com 2.087; e Belford Roxo, com 1.802. Tudo isso em 2004. Lesão corporal (Art. 129 do Código Penal) e ameaça (Art. 147) são os crimes mais cometidos contra as mulheres. Só o Ciam prestou mais de 33 mil atendimentos a cerca de 8,8 mil mulheres, desde que começou a funcionar, em 2001.

Os números sinalizam uma realidade: as mulheres estão mais encorajadas e estimuladas a denunciar a violência pelo fato de estarem encontrando mecanismos mais adequados de atendimento. Só como exemplo, em todas as Deams as titulares são delegadas. A Rede Medusa, uma espécie de intranet, está diretamente ligada à Polinter, o que permite verificar se o condenado já tem alguma passagem pela polícia.

O Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (Cedim) ¿ que se originou em uma salinha na Secretaria Estadual de Saúde em 1987 e hoje tem sua sede em um prédio tombado pelo Patrimônio Histórico na Rua Camerino, 51, no Centro, onde funcionou a antiga Escola Colômbia ¿ é parte dessa trajetória em favor da plena cidadania feminina. É uma casa aberta às mulheres. Plenitude tem sinônimo de eqüidade. E não é isso que a realidade brasileira mostra, apesar de as mulheres superarem o número de homens em 4,3 milhões, de acordo com a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE de 2003. Mesmo assim, no mercado de trabalho as mulheres ganham cerca de 40% menos do que os homens para desempenhar as mesmas funções. Sem falar que as mulheres chefes de família no Estado do Rio já são cerca de 35% da força de trabalho, para citar apenas o exemplo fluminense. Se a cota mínima para mulheres na política ainda não é cumprida à risca, na Assembléia Legislativa do Rio, pelo menos, vê-se um avanço: a mesa diretora do Legislativo Estadual é composta por quatro deputadas, fato inédito no Brasil. Sem esquecer que a atual chefe do Executivo fluminense é uma mulher. Há muito que se avançar ainda. E saúde é fator preponderante na vida de qualquer mulher. Cerca de 800 mil mulheres abortam todos os anos no Brasil, fazendo erradamente desse procedimento um método contraceptivo extremamente perigoso por conta dos mais variados e rústicos métodos utilizados para esse fim. A mulher deve ter total controle sobre o seu próprio corpo, amparada por equipamentos públicos capazes de permitir acesso a um planejamento familiar adequado. É por conta dessa polêmica que o Conselho Estadual dos Direitos da Mulher do Rio de Janeiro é defensor de um amplo debate sobre o tema, nos moldes do que propõe a Secretaria Especial de Políticas Públicas para as Mulheres da Presidência da República.

Cada vez mais tem-se discutido a questão da mulher como vítima do tráfico internacional de seres humanos, uma indústria maquiavélica, já rotulada de crime organizado, que movimenta US$ 9 bilhões, sendo superada apenas pelo tráfico de drogas e de armas. Atualmente, estima-se em cerca de 70 mil o número de mulheres brasileiras traficadas para o exterior.

É mais uma forma perversa de cercear a cidadania feminina. É preciso que todos se unam para reverter todo um quadro de violência contra a mulher. O momento não poderia ser mais propício. As comemorações envolvendo a mulher, que se estendem por todo o mês de março, são significativas para as entidades e organizações de mulheres. Devemos festejar sim! Porém, mais do que reverenciar a mulher numa única data do calendário, é preciso que mulheres e homens, órgãos públicos, organizações não-governamentais e a sociedade civil em geral estejam engajados em mais essa batalha, 365 dias por ano.

*Advogada e presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher do Rio de Janeiro.