O Estado de S. Paulo, n. 46890, 05/03/2022. Notas & Informações, p. A3

STF não é revisor do Congresso


 

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de manter a validade das regras de cálculo do valor do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, o chamado Fundo Eleitoral, tem uma importante dimensão pedagógica. Ainda que a maioria dos ministros da Corte tenha manifestado discordância pessoal em relação ao valor de R$ 4,9 bilhões destinado ao fundo, o plenário do STF respeitou a decisão legislativa, em deferência ao princípio da separação dos Poderes. É o Congresso, e não o Judiciário, que define a legislação orçamentária.

A missão do STF é defender a Constituição. Cabe à Corte, portanto, entre outras atribuições, realizar o controle de constitucionalidade das leis aprovadas pelo Congresso. Se uma lei contraria o texto constitucional, ela deve ser retirada do ordenamento jurídico. Caso contrário, haveria uma inversão hierárquica de normas, com uma lei prevalecendo sobre a Constituição, o que é um evidente contrassenso.

O controle de constitucionalidade do STF sobre os atos do Legislativo e do Executivo não é, no entanto, uma autorização para que o Judiciário faça uma avaliação política desses atos. A Justiça não revisa politicamente as decisões do Congresso, por mais equivocadas que possam ser. Sendo constitucionais, as opções legislativas devem ser respeitadas. “O valor (do Fundo Eleitoral) é alto, mas inconstitucionalidade aqui não há”, disse o presidente do STF, ministro Luiz Fux.

Se a existência do Fundo Eleitoral em si já é imoral, mais imoral ainda é seu bilionário valor, que cresce exponencialmente a cada eleição. Com pessoas passando fome, com necessidades prementes em áreas essenciais, como educação e saúde, Senado e Câmara destinaram inacreditáveis R$ 4,9 bilhões dos cofres públicos para os partidos políticos realizarem as campanhas de seus candidatos. Eis a total disfuncionalidade. 

Um fundo que nem deveria existir, pois desvirtua a representação política, recebeu um valor superior ao orçamento de 99,8% dos municípios brasileiros, segundo levantamento do Estadão. Trata-se de cabal deboche com a população e com o País. No entanto, por mais contundente que seja o erro do Congresso, o Supremo não está autorizado a mudar o valor do fundo. Em um Estado Democrático de Direito, com vigência do princípio da separação de Poderes, o orçamento público é uma decisão dos parlamentares eleitos, que respondem politicamente por essa decisão.

Ao rejeitar a judicialização da política, mantendo o valor do Fundo Eleitoral, o Supremo não disse que a decisão do Congresso foi correta ou condizente com o interesse público. Apenas reconheceu que o Judiciário não é órgão revisor do Legislativo. Erros políticos devem ser corrigidos pela política, no âmbito político. Em última análise, é o eleitor, no exercício de seus direitos políticos, quem tem a responsabilidade de fazer o controle político das decisões do Congresso.

Vale notar que a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) 7058, questionando o valor do Fundo Eleitoral, foi ajuizada pelo Partido Novo, que tentou reverter no Judiciário a derrota sofrida no Legislativo. Como enfatizou corretamente o presidente do STF, ministro Luiz Fux, os inconformados com derrotas na arena política acreditam que podem revertê-las apelando ao Supremo. O fenômeno da judicialização da política não é, portanto, mero fruto do ativismo de alguns membros do Judiciário. São os próprios partidos que, contrariando o princípio democrático, recorrem ao Supremo com o objetivo de alterar a decisão da maioria dos parlamentares.

Felizmente, por 9 votos a 2, o Supremo rejeitou a manobra, abstendo-se de intervir na decisão do Congresso. Não deixa de ser curioso que o novo ministro do STF, André Mendonça, indicado por Jair Bolsonaro – que continuamente critica a suposta interferência do Supremo sobre os outros Poderes –, tenha sido um dos dois a defender a alteração da decisão política do Legislativo. 

Fundo Eleitoral de R$ 4,9 bilhões é uma aberração, mas a decisão do Supremo foi correta. No regime democrático, decisão política equivocada não é corrigida pela caneta de juiz, mas pelo voto do eleitor. Sem admitir atalhos cômodos, “todo o poder emana do povo” tem consequências exigentes.