Correio Braziliense, n. 20693, 18/01/2020. Mundo, p. 12

Aiatolá sai em defesa da Revolução Islâmica

Rodrigo Craveiro



Entre os minaretes de 230m de altura, a principal voz do Irã ecoou dentro da Mesquita Imã Khomeini Mosalla, em Teerã, comandando as orações sagradas de sexta-feira para o islamismo. Enquanto os fiéis gritavam "Morte à América" e "Morte a Israel", o aiatolá Ali Khamenei proferia o primeiro sermão desde 2012, marcado pela crítica contundente aos Estados Unidos e pelo ataque aos manifestantes que pedem sua renúncia. O guia supremo do Irã também saiu em defesa da Guarda Revolucionária Islâmica, acusada de derrubar o Boeing 737-800 que fazia o voo PS 752 da Ukraine International Airlines (UIA), matando 176 pessoas.

Com turbante de cor preta e túnica marrom, Khamenei adotou um tom desafiador; enalteceu o martírio do general Qasem Soleimani (comandante da Força Quds morto em um bombardeio por drone norte-americano em Bagdá); e chamou o presidente norte-americano, Donald Trump, de "palhaço" que acusou de apoiar os iranianos com a intenção de trair-lhes. "Se você está próximo do Irã, é com a intenção de cravar uma adaga venenosa no peito do povo (iraniano)", disse. "O Irã mostrou que apoia a resistência e não a submissão. Aqueles que tentam mostrar algo mais à opinião mundial não são honestos."

Apesar de reconhecer a derrubada do voo PS 752 como um "acidente amargo, que queimou o nosso coração", Khamenei disse que os inimigos do Irã usaram a admissão de culpa do regime para enfraquecer a Guarda Revolucionária Islâmica. Segundo o líder máximo do país, algumas pessoas tentaram utilizar a tragédia para levar ao esquecimento o "grande martírio e o sacrifício" de Soleimani. "Nossos inimigos ficaram tão felizes com a queda do avião quanto ficamos tristes... Felizes por terem encontrado algo para questionar a Guarda Revolucionária, as forças armadas, o sistema", acrescentou. O líder espiritual enalteceu o trabalho de Soleimani fora das fronteiras pela "segurança" da nação iraniana e assegurou que o povo de sua nação é a favor da "resistência" diante dos "inimigos".

O discurso do aiatolá coincide com a intensificação de protestos contra o regime — um dos momentos mais delicados, sob o ponto de vista da política interna, desde a deposição do xá Reza Pahlavi e a ascensão ao poder do aiatolá Ruhollah Khomeini, em 1979, que implantou a teocracia islâmica no Irã. Khamenei tornou a provocar os Estados Unidos, ao fazer alusão ao lançamento de 22 mísseis iranianos contra as bases aéreas de Ain Al-Asad e de Erbil, no Iraque.

Deus
Segundo Khamenei, o mundo viu a história ser feita naquele 8 de janeiro. "Não foram dias normais. O fato de uma potência, uma nação, possuir as forças espirituais para responder ao maior poder ameaçador do mundo com tal bofetada no rosto mostra a mão divina, a mão de Deus", declarou. "O que ocorreu não poderia ter vindo de nenhum ator humano, somente da mão de Deus. O dia em que os mísseis choveram sobre a base americana foi o dia do Todo-Poderoso."

Ex-repórter do jornal The New York Times em Teerã e autora de Lonely war, one woman's account of the struggle for modern Iran ("Guerra solitária, o relato de uma mulher sobre a luta pelo Irã moderno"), a iraniana-canadense Nazila Fathi explicou ao Correio que Khamenei utilizou o sermão de ontem para aglutinar os seus partidários contra os manifestantes. "Isso confirma que ele seguirá com a mesma estratégia de repressão, sem tomar conhecimento das demandas dos protestos. Ele saudou a Guarda Revolucionária e chamou os manifestantes de 'patetas' dos EUA, o que dá às tropas do governo a luz verde para a utilização da força contra os atos de rua", disse. Nazila sublinha que, por várias vezes, Khamenei se mostrou um juiz imparcial. "Agora, as pessoas têm levantado a voz, e o regime tem escutado claramente sua mensagem. Temos de esperar e ver como o governo reagirá nos próximos meses."

De acordo com Ali Mourad, pesquisador freelancer libanês especialista em assuntos do Golfo Pérsico, é muito raro ver Khamenei no comando das orações de sexta-feira. "Toda vez que algo grande surge no horizonte, o líder supremo escolhe proferir o sermão. Hoje (ontem), ele enviou uma mensagem a Washington de que a revolução ainda é forte, e que o próximo estágio será confrontar os americanos no oeste da Ásia", explicou. Nos últimos dias, Khamenei reforçou o apelo para que os EUA se retirem militarmente do Oriente Médio.

Marinha dos EUA admite feridos em bombardeio

Pelo menos 11 soldados norte-americanos sofreram traumatismos no ataque do Irã a uma base no Iraque na semana passada. A informação, divulgada pela Marinha dos Estados Unidos, se contrapõe ao fato de que o presidente Donald Trump garantiu a inexistência de vítimas. "Apesar de nenhum membro militar americano ter morrido no ataque iraniano de 8 de janeiro à base aérea de Al-Assad, vários foram tratados por sintomas de comoção cerebral devido às explosões e ainda estão sob avaliação", informou o porta-voz do Comando Central da Marinha, Bill Urban. "Nos dias posteriores ao ataque, por precaução, alguns membros do serviço foram transferidos da base aérea de Al-Assad", revelou Urban, especificando que oito soldados passaram pelo Centro Médico Regional Landstuhl, na Alemanha, e três pelo Campo de Arifjan, no Kuwait, para exames médicos. No momento do ataque, a maioria dos 1.500 soldados americanos na base estavam em abrigos antiaéreos.

Eu acho...
"O aiatolá Ali Khamenei escolheu falar em árabe na última parte de seu pronunciamento. Isso tem um propósito significativo. Ele se dirigia às populações do mundo árabe, as quais o Irã está disposto a ajudar a se livrarem da ocupação militar e da hegemonia norte-americana em seus países, o que pode ser visto como uma postura desafiadora de Teerã depois do assassinato de seu principal homem no Oriente Médio, o general Qasem Soleimani."
Ali Mourad, pesquisador freelancer libanês especialista em assuntos do Golfo Pérsico

Trechos do discurso // Os principais assuntos abordados pelo guia supremo do Irã nas orações de sexta-feira
Ataque com mísseis
» Mais uma vez, o aiatolá Ali Khamenei afirmou que o lançamento de 22 mísseis contra duas bases aéreas usadas pelos americanos no Iraque foi "um tapa na cara" dos Estados Unidos. Também considerou o ataque um "ponto de virada na história".

Derrubada do voo PS 752
» O líder máximo do Irã expressou condolências aos familiares das 176 vítimas na queda do Boeing 737-800, mas citou "ambiguidades" em torno do incidente. Ele admitiu que a questão deve ser abordada e que medidas precisam ser adotadas para evitar a repetição da tragédia.

Estados Unidos
» Ele se referiu ao presidente dos EUA, Donald Trump, como um "palhaço", que cravaria uma "adaga venenosa" no peito do povo do Irã. Também acusou Washington de mentir ao expressar apoio aos iranianos.

Europa
» Atacou França, Alemanha e Reino Unido como "lacaios" dos Estados Unidos, que não são dignos de confiança. Criticou os três países por "esperarem colocar o Irã de joelhos", uma alusão à pressão pelo cumprimento dos compromissos firmados no acordo nuclear.

Guarda Revolucionária Islâmica
» O aiatolá saiu em defesa da Guarda Revolucionária, ao declarar que ela rompeu a imagem dos EUA como superpotência, depois dos ataques com mísseis contra bases usadas pelos americanos no Iraque. Ele afirmou que a Força Quds não é uma organização com missões administrativas, com grandes motivações humanistas. Khamenei sublinhou que a Guarda "manteve a segurança do Irã".

Morte do general Qasem Soleimani
» Para o guia supremo, Soleimani deve ser visto como um "pensamento" e um "caminho".

Protestos contra o regime
» Khamenei disse que a "catástrofe" (queda do avião) é "um acidente amargo" que "queimou nossos corações". E fez uma crítica às manifestações da oposição contra o regime. "Mas alguns tentaram (usá-lo) como forma para fazer (esquecer) o grande martírio e o sacrifício de Soleimanan", declarou.