O Globo, n. 31547, 21/12/2019. País, p. 16-17

Década de rupturas: José Padilha, o mecanismo está se ajustando

José Padilha


José Padilha chegou atrasado para as duas conversas com O GLOBO, em um hotel em São Paulo. Aos 52 anos, ele tem feito entrevistas com personagens do documentário ainda sem data para ser lançado sobre os vazamentos do site The Intercept Brasil de diálogos dos procuradores da Lava-Jato. “É possível ao mesmo tempo achar que existe uma corrupção sistêmica e que o processo pode ter sido julgado e avaliado de maneira arbitrária. Não há uma contradição entre as duas coisas”, disse.

“Tropa de Elite 2” termina com a chegada dos milicianos em Brasília. Olhando a cena de dez anos depois, qual que é a sensação?

Foi de certa maneira profético, mas lembrando que o miliciano que chega em Brasília no filme é deputado. Ele não chega (risos) no Executivo.

O sistema é foda, parceiro?

O sistema está desnudo agora, está tendo que se reestruturar a olhos vistos. O capitão Nascimento (personagem principal de “Tropa de Elite”) estava falando do sistema da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Você está falando do sistema político brasileiro. O que é foda no sistema político? É que a corrupção não é um desvio de conduta. A corrupção é um processo estruturante da política nacional. Eu chamei isso de mecanismo.

Como funciona o mecanismo?

O partido ou grupo político que ganha eleição precisa formar maioria na Câmara dos Deputados pra governar. Como ele forma essa maioria? Ele distribui cargos, loteia cargos nas empresas estatais, nos ministérios. Quanto maior o orçamento que o cargo controla, mais peso ele tem na formação da base política. O político indica o cara para o cargo que ele quer e o cara trabalha junto às empresas. Normalmente são empreiteiras, mas também são fornecedores do Estado organizados na forma de cartel. Essas empresas colocam parte do dinheiro no caixa dois, contratando serviços que não existem, etc. etc. Doleiros então administram esse caixa dois, e devolvem esse dinheiro para o grupo político que colocou o cara lá no cargo. Esse grupo político, então, vota com o Executivo. Isso não é um desvio, isso é uma regra na quase totalidade dos municípios. Como é que eu sei isso? Porque em parte a Lava-Jato mostrou, mas hoje mesmo entrevistei uma pessoa para o meu documentário que trabalha em São Paulo entregando valores para a Odebrecht. Ele calculou ter entregue R$ 1 bilhão em dinheiro em oito anos para 537 endereços diferentes de alguns políticos famosos, outros menos famosos. Só em São Paulo. Então o tamanho disso, a capilaridade disso é total. Literalmente a política se estrutura nessas bases.

A Lava-Jato não mudou o funcionamento do mecanismo?

Na esteira da Lava-Jato, o Congresso aprovou o financiamento público de campanha. Em princípio, achei bom o financiamento público porque desmonta a necessidade de recursos privados via caixa dois e descontamina a operação das grandes empresas estatais e o orçamento das obras públicas. Mas, ao falar hoje com um operador da Odebrecht, ele disse “você acredita em Papai Noel? Vai acontecer o financiamento público de campanha e o mecanismo ao mesmo tempo”. Foi o que ele me disse e ele tem mais experiência do que eu. O mecanismo está se ajustando. A ideia de que vamos desmontar essa relação entre política e corrupção através de regras de financiamento de campanha sem mudar a forma pela qual a campanha é feita é ilusão.

Seus filmes “Ônibus 174”, “Tropa 1”, “Tropa 2” e os mecanismos têm uma lógica de continuidade?

“Ônibus 174” (documentário de 2002) olha para Sandro Nascimento, um ex-menino de rua que faz passageiros de ônibus como reféns. O filme pergunta: por que ele está sendo tão violento? E por que ele não se entrega à polícia? As respostas temos olhando a vida dele. Sandro era uma criança que estava na Candelária quando os policiais cometeram a chacina com meninos de rua (em 1993) e foi preso numa das piores prisões brasileiras. Ele sabe para onde vai quando sair dali. Foi o Estado que produziu a violência naquele menino. E o Estado também produziu, na psicologia dele, a certeza de que não pode se entregar. Se ele se entregar, vai morrer. E o que acontece? Ele se entrega, o Bope bota ele no camburão e o estrangula na frente das câmeras.

“Tropa” é o ângulo da polícia.

Aí eu chamei o policial com o mesmo sobrenome do menino de rua, era uma dica. Quando você olha o policial, você vê que a violência do policial também é produzida pelo Estado. O policial recebe um salário muito baixo, é instado a viver uma guerra contínua recorrente contra o tráfico. Ele vai para a favela lutar contra caras armados de granada, fuzil AR-15. A maioria desses policiais ou se omite, ou se corrompe — a maioria se corrompe — ou vai para uma guerra, que é o que acontecia com o Bope quando tinha só 70 policiais. Quem provoca a violência do policial? É o Estado. Por que o Rio de Janeiro é tão violento? É porque os criminosos que o Estado cria se encontram com os policiais que o Estado cria.

“Mecanismo” é “Tropa” quando o inimigo agora é outro?

No “Mecanismo”, estou olhando para uma coisa subjacente à violência, que é a corrupção. No Brasil, a corrupção é parte estruturante

“Capitão Nascimento é um termômetro (do desejo por violência policial). A temperatura já estava lá. No ‘Ônibus 174’, quando o Sandro desce tem um monte de gente que corre para linchá-lo” da política. Não pelo volume, mas porque a corrupção determina a alocação dos recursos. O político prefere fazer o estádio do Corinthians a investir em escola, prefere fazer Belo Monte a reformar as cadeias. Prefere porque dá mais dinheiro para a campanha. O “Mecanismo” não é um detalhe, é a base do gasto público.

É uma visão extremamente pessimista de país.

É uma visão realista. Não inventei o que acontece com os meninos de rua, o que acontece no Instituto Padre Severino, nas cadeiras superlotadas, nos batalhões da PM, o poder da milícia e muito menos inventei o sistema Drousys (arquivo de controle dos pagamentos ilegais da Odebrecht). É a realidade do Brasil. Por que o Brasil não tem resultados de distribuição de renda de crescimento econômico sustentável? Em parte, por isso.

O Capitão Nascimento libertou do armário o discurso do “tiro na cabecinha”?

O Capitão Nascimento é um termômetro. A temperatura já estava lá. No plano final de “Ônibus 174”, quando o Sandro desce tem um monte de gente que corre para linchá-lo. Isso é o Capitão Nascimento muito antes de “Tropa”, do novo governador.

Seus filmes mexem com temas complexos e que muita gente acha terem soluções simples: bandido bom é bandido morto e todo corrupto deve ser esquecido na cadeia.

No Brasil, bandidagem é tanto o traficante quanto o político corrupto. Essa ideia de “o cara que vai lutar contra o traficante é o mesmo que vai lutar contra a corrupção” não tem a ver com “Tropa de Elite”. É o resultado da violência urbana mais Lava-Jato. A Lava-Jato tem características que não existem em nenhuma operação que jamais vi. Ela é midiática. A cada fase da operação, os procuradores e policiais davam entrevistas. Nunca vi isso nos EUA porque expõe pessoas que são investigadas, e não condenadas. Só que isso era feito recorrentemente e nunca ninguém falou nada. Depois das mensagens entre os procuradores do site “The Intercept”, podemos olhar de outra maneira.

O que a Lava-Jato mostrou é mentira? Não, é verdade. A Odebrecht, a Petrobras, a OAS faziam parte de um enorme sistema de corrupção. Então, na última eleição a população fez o PT e o PSDB tomarem uma lavada. E decidiram votar em um cara que luta contra a bandidagem. Que bandidagem? O conceito largo de bandidagem, que joga no mesmo saco o político corrupto e o traficante.

Esse conceito “contra a bandidagem” elegeu o Bolsonaro?

O cara que tem o discurso fácil da violência urbana, da milícia, do antitudo, a favor de criar um excludente de ilicitude apesar de a polícia matar 1.500 pessoas todo ano oficialmente no Rio, para ficar mais fácil do policial não ser punido. Aí, esse cara vira a solução a nível federal, porque o conceito de bandidagem é um conceito amplo, que não vem do “Tropa” e não vem do “Mecanismo”. Ele vem da realidade. Existe a violência urbana e existe a corrupção.

O senhor se desapontou com o ministro Sergio Moro?

O Bolsonaro nunca foi apto a ser presidente da República. Não satisfazia condições morais, éticas mínimas, para ser presidente. Ele foi para a televisão no voto do impeachment da Dilma e elogiou um torturador. Não é aceitável. Não cabe na civilização.

Se você olhar para o histórico do Bolsonaro, tem a relação do Flávio condecorando milicianos. É aceitável isso? Evidente que não é aceitável. Isso nada tem a ver com a Lava-Jato. O cara é desqualificado porque ele é. Se não existisse Lava-Jato, ele ia continuar sendo desqualificado. Aí, um juiz que julga um caso fundamental para o processo eleitoral brasileiro, condena o ex-presidente Lula na primeira instância. Ele não pode aceitar um cargo no governo de quem é eleito nas eleições das quais o Lula não pode participar. Não pode e ponto. Então por que ele cometeu esse desatino? Eu conversei com ele. Ele falou que na operação Mãos Limpas houve um retrocesso, e que estando no governo ele estaria na posição de tentar impedir isso. Essa é a visão benéfica desse erro. Continua sendo erro, na minha opinião.

Quando fez “Mecanismo”, a esquerda reagiu com ódio. Agora, o senhor prepara um documentário sobre os vazamentos do “The Intercept” e, fatalmente, será atacado pela direita. Esse FlaxFlu paralisa o País?

Ele paralisa o pensamento. Por isso eu acho que ideologia é muito ruim para o pensamento. É como se eu botasse um óculos vermelho, se sou de esquerda; se sou de direita, boto um óculos azul. A esquerda acha que a Lava-Jato foi errada, mas não teve corrupção. A direita acha que a Lava-Jato foi certa e teve corrupção.

É um impasse sem saída?

Não há outra alternativa ao Brasil a não ser lidar com a Lava-Jato. Quando acham R$ 51 milhões na casa do Geddel, quando é revelada a planilha da Odebrecht... A LavaJato revela uma enorme corrupção sistêmica do Brasil. Essa corrupção atinge o PT, atinge o PMDB e atinge o PSDB. O Brasil tem de lidar com a corrupção sistêmica. Mas, quando você vê a forma pela a Lava-Jato foi conduzida nos tribunais e na mídia... Para o meu horror, eu acho que se os processos contra o Sérgio Cabral foram viciados, o Sérgio Cabral deve estar livre. Tem de lidar com esse fato. A despeito da corrupção sistêmica, o processo de investigação que chegou mais fundo foi levado a cabo de maneira democrática dentro das regras do jogo como manda a lei? Essa é outra questão. É possível ao mesmo tempo achar que existe uma corrupção sistêmica e que o processo pode ter sido julgado e avaliado de maneira arbitrária. Não há contradição entre as duas coisas.

A revisão dos julgamentos não pode gerar uma frustração?

Mas a Lava-Jato já deu em muita coisa, revelou o mecanismo. O Brasil tem de lidar com a corrupção, com o sistema político organizado a partir da corrupção, com os desmandos jurídicos, com a relação entre as investigações e a mídia, que causaram prejuízo às defesas, botaram o Supremo Tribunal Federal e o STJ sob pressão e podem ter deturpado vários julgamentos. Precisamos lidar com a Lava-Jato como um todo: o sistema político corrupto, corrompido, e o sistema judicial também corrompido. As duas coisas podem ser verdade ao mesmo tempo.

Qual a diferença de fazer “Robocop” para a MGM e “Narcos” para a Netflix?

Um filme de estúdio tem sua receita na bilheteria, então a pressão e a interferência são maiores. Uma empresa de streaming, como a Netflix, pode lançar 20 títulos num ano e dentre esses arriscar dois ou três que talvez não façam sucesso. A pressão é menor.

Para onde vai o audiovisual?

A primeira coisa que vai acontecer é que o formato vai acabar. Na TV a cabo o programa vai ter 40 ou 50 minutos, vai ter comercial, e um filme vai ter cerca de duas horas. É o formato. No streaming, não preciso fazer em duas horas. Eu posso fazer uma história de 33 minutos ou em quatro horas. O consumidor é que decide se quer assistir oito capítulosdeumavezouemvários dias. E agora serão várias competidoras, além da Netflix. A escolha vai ser muito mais do público do que da companhia que disponibiliza o produto, porque é o consumidor que escolhe se quer assistir na TV ou na tela do celular. Isso vai criar consumidores mais exigentes.

“O cara que tem o discurso fácil da violência, da milícia, do antitudo virou a solução. Votou-se em um cara que luta contra a bandidagem, no conceito que joga no mesmo saco o político corrupto e o traficante.”