O Estado de S. Paulo, n. 46891, 06/03/2022. Espaço Aberto, p. A5

A resolução da ONU além do que os olhos podem ver

Lucas Carlos Lima


 

Na diplomacia e nas relações jurídicas internacionais, há certos atos que guardam significados para além do que um mero perpassar de olhos pode sugerir. A Resolução da Assembleia-Geral das Nações Unidas adotada no dia 2 de março de 2022 por 141 votos favoráveis, 5 contrários e 35 abstenções é um desses atos. Não obrigatória por natureza, exortatória por definição, ainda assim a resolução é eloquente. Nos detalhes, diz muito, e num conflito de argumentos jurídicos pesa a balança para um dos lados da narrativa.

A longeva e bem definida técnica dominada por juristas internacionalistas sugere que não basta que a natureza não vinculante da resolução do órgão democrático da ONU não encerre os debates: o texto, o contexto e os precedentes são significativos. Quanto aos precedentes, trata-se de uma resolução invocando a vetusta resolução Unindo para a Paz de 1950. Nas raras vezes em que deu o ar da graça para acomodar crises internacionais, tal resolução fazia com que se lesse, mutatis mutandis, que “o balanço de competências da ONU se altera, a Assembleia vai agir com poderes do Conselho, que está emperrado”.

Quanto ao texto, a escolha de verbos é loquaz e noticia-se que o Brasil foi jogador importante no exercício de encontrar termos capazes de impedir confrontação demasiada. O voto brasileiro veio acompanhado de uma explicação que pode ser traduzida por “não é o texto que queríamos, mas, dadas as circunstâncias, não se pode votar contra”. Tal posição pode ser lida sob diferentes ângulos. Por um lado, serviria de aceno ao diálogo com Moscou; mantém-se a porta aberta. Por outro lado, alinha-se à posição majoritária, engrossando o coro sobre o descabimento dos argumentos que ressoam do lado de lá do muro.

Isso porque o texto da resolução é contundente e significativamente mais severo do que o adotado em relação à anexação da Crimeia em 2014, por exemplo. Não é todo dia que se lê num documento da ONU que um de seus órgãos “lamenta, nos termos mais fortes, a agressão da Federação Russa contra a Ucrânia em violação ao Artigo 2.4 da Carta”. Nesse sentido, a alta adesão de 141 Estados é ainda mais significativa: construiu-se consenso na maioria em torno de um texto austero que tem implicações do ponto de vista legal.

A resolução reafirma seu compromisso com a soberania, a independência, a unidade e a integridade territorial (também marítima) ucraniana. Para a Rússia, a resolução deplora, em vez de condenar, e demanda a retirada de tropas e o fim das violações, recordando que existem princípios obrigatórios que norteiam a vida e a amizade dos Estados.

O texto não se esquece da Bielorrússia, cujo uso ilícito da força também é lastimado.

Em abstrato, a resolução condena violações ao direito humanitário e pede o respeito aos princípios básicos do Direito Internacional. Eis a premissa básica da resolução: as normas reconhecidas devem ser respeitadas e não se pode retroceder naquilo que foi estabelecido.

Não é a força dos verbos escolhidos, mas as informações que a resolução avança que a transformam num instrumento poderoso. O documento torna indisputáveis certos fatos: 1) houve uma agressão, isto é, no linguajar jurídico, o mais severo uso da força prenunciado na Carta da ONU e em resoluções anteriores; 2) a Carta foi violada em relação à proibição do uso da força; 3) o uso da força foi ilícito, de modo que as escusas apresentadas até então pela Rússia foram rechaçadas; 4) a declaração sobre o status de Donetsk e Luhansk pela Rússia é ilícita; 5) voltam à baila os acordos de Minsk, responsáveis por apaziguar a crise russo-ucraniana de 2014.

Duas consequências podem ser depreendidas e merecem atenção. Uma, dentro da arquitetura jurídica que estrutura o sistema ONU: está-se diante de sérias violações, até mesmo das assim chamadas regras peremptórias do Direito Internacional. Duas: diante de violações às regras e princípios cardinais do sistema, algumas consequências especiais podem ser elencadas.

A primeira é que os Estados violadores têm de cessar seus atos ilegais. Além disso, todo membro da comunidade internacional está sob o dever de não reconhecimento desses atos ilícitos. E terceira, se há violações a regras, os atos tomados pelos membros da comunidade para que os violadores voltem a honrar suas obrigações – mesmo que em desacordo com o Direito – são legitimáveis. Um manto de legalidade – com limites de proporcionalidade e necessidade – recobre as sanções impostas.

Em suma, os 141 Estados que votaram a favor da resolução de 2 de março avançaram estrategicamente para além do texto e prepararam o terreno para as batalhas diplomáticas, políticas e jurídicas que se seguirão. Não obrigatória? Sim. Eloquente? Também. Uma vitória de Pirro? Os próximos passos do conflito responderão. Será invocada no futuro? Certamente.

Professor de Direito Internacional da UFMG, membro da Diretoria da Ila-Brasil, é Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Cortes e Tribunais Internacionais CNPQ/UFMG