O Estado de S. Paulo, n. 46891, 06/03/2020. Economia & Negócios, p. B7

Para empreendedora negra, recusa ao crédito é 50% maior

Shagaly Ferreira


 

O sonho da microempreendedora Catia Tavares, de 49 anos, era oferecer um cardápio gourmet na região periférica de Campinas (SP). Para isso, investiu os recursos que juntou em mais de 20 anos trabalhando como professora para abrir um restaurante em fevereiro de 2020. Mas ela não imaginava que um mês depois fecharia as portas por conta da pandemia. A situação ainda piorou quando Catia teve empréstimos negados, mesmo apresentando a documentação exigida pelas instituições financeiras. Para ela, ser uma mulher negra influenciou na negativa. “Uma mulher de pele branca e moradora de um lugar mais abastado tem a porta aberta. Não há porta aberta para mulher negra e periférica.” Dados da 13.ª pesquisa de Sebrae/FGV sobre o impacto da covid-19 nos pequenos negócios, interseccionados por sexo e cor, mostram que 45% das mulheres negras tiveram empréstimo negado. Essas negativas vieram em um cenário bastante difícil: 76% das empreendedoras negras registraram queda de faturamento mensal em 2021 e 36% sinalizaram estar com dívidas ou empréstimos atrasados.

Com dificuldade de recuperação durante a retomada econômica, 20% dos pequenos negócios delas tiveram que fechar as portas de forma temporária ou definitiva. Entre as empreendedoras brancas, esse índice cai para 13%. A coordenadora do programa Sebrae Delas, Renata Malheiros, aponta que as mulheres, de um modo geral, não costumam ser incentivadas a empreender em setores de alto valor agregado, e destaca que, tradicionalmente, as instituições bancárias não se apresentam como um local acolhedor para elas. “Muitas vezes, as financeiras não estão preparadas para receber as mulheres com filhos, por exemplo. Por questões culturais e de estereótipos, não confiam, questionam se ela é mesmo a dona da empresa e se o marido sabe que ela quer fazer um empréstimo”, explica.

Fundo Filantrópico. Com foco na luta pelos direitos econômicos de mulheres negras, desde setembro de 2020 o Fundo Agbara, de São Paulo, tem oferecido ao segmento aporte financeiro, capacitações técnicas e mentorias. Até agora foram 1,8 mil atendimentos para mais de 500 mulheres em todo o Brasil. Catia faz parte dessa rede. “O Agbara me colocou em um grupo onde encontro outras negras empreendedoras como eu. É muito mais do que apenas um aporte financeiro, é apoio”, diz a empresária, que usou os recursos para compra de um forno industrial.

Para manter os atendimentos e o financiamento às empreendedoras, o Agbara tem uma rede com 250 doadores individuais e recorrentes, com valor médio de R$ 30 a R$ 35 por mês. Ao todo, R$ 150 mil já foram arrecadados. O fundo também conta com recursos recolhidos por meio de editais nacionais e internacionais e, neste ano, passou a receber investimentos para desenvolvimento institucional, vindos das organizações Próspera Social, Fundação Tide Setubal e The Global Fund. O Agbara foi idealizado por Aline Odara, de 35 anos, mestranda em Educação na Unicamp, que teve a ideia quando decidiu organizar uma vaquinha para ajudar uma amiga a comprar uma máquina de costura. “A ideia inicial era de que 20 amigos doassem R$ 20. A gente teria R$ 400 por mês para contemplar uma mulher negra durante 1 ano”, afirma.

Novo Modelo. Até o início deste ano, o trabalho na entidade formada por Aline e mais seis mulheres negras era voluntário. Agora, os recursos recebidos também ajudam na remuneração e no investimento em outros formatos de promoção à geração de renda. Neste mês, o Fundo vai oferecer uma jornada de formação para iniciativas de mulheres negras, com duração de dois meses. Dez iniciativas já foram selecionadas. A cantora e artesã Telma da Silva, de 47 anos, foi contemplada pelo Agbara no ano passado. Moradora de Campinas, ela costumava atuar em eventos na região e fez um projeto para gravação de um EP (um disco com poucas músicas), que está em produção. “O Agbara nasceu para nos dar esperança e um brilho de luz na escuridão”, diz a artista.