O Estado de S. Paulo, n. 46892, 07/03/2022. Internacional, p. A11
Querida China: de que lado você está?
Thomas L. Friedman
A cada dia que passa, a guerra na Ucrânia se torna não apenas uma tragédia cada vez maior para o povo ucraniano, mas também uma ameaça maior para o futuro da Europa e do mundo como um todo. Existe apenas um país que pode ser capaz de impedir a guerra agora – e não são os Estados Unidos. É a China.
Se a China anunciasse que, em vez permanecer neutra, está se juntando ao boicote econômico à Rússia – ou até mesmo apenas condenando com firmeza sua invasão não provocada contra a Ucrânia e exigindo que os russos se retirassem do país – isso poderia abalar Vladimir Putin o suficiente para que ele pare. No mínimo, o faria parar para pensar, porque ele não tem no mundo nenhum outro aliado significativo, além da Índia.
Por que motivo o presidente chinês, Xi Jinping, assumiria tal posição, que aparentemente pareceria minar seu sonho de tomar Taiwan da mesma maneira que Putin está tentando tomar a Ucrânia? A resposta curta é que as últimas oito décadas de relativa paz entre as grandes potências levaram a um mundo em rápida globalização, que foi crucial para a veloz ascensão econômica da China e a retirada da pobreza de aproximadamente 800 milhões de pessoas desde 1980. A paz tem sido muito boa para a China. O crescimento contínuo da China depende de sua capacidade de exportar e aprender lições de um mundo que se integra constantemente e moderniza livres-mercados.
Simbiose. Toda a barganha faustiana entre o Partido Comunista Chinês e os cidadãos chineses – de que o PCC continuará governando enquanto a situação econômica do povo continuar melhorando – depende de um significativo grau de estabilidade da economia do mundo e do sistema de comércio global.
Para qualquer estrategista chinês aferrado ao pensamento antigo – de que qualquer guerra que enfraqueça os dois principais rivais da China, EUA e Rússia, tem de ser uma coisa boa – eu diria o seguinte: toda guerra traz consigo inovações (novas maneiras de combater, vencer e sobreviver), e a guerra na Ucrânia não é nenhuma exceção.
Já vimos três "armas" acionadas de maneiras que jamais havíamos visto ou que não víamos havia muito tempo, e seria prudente para a China estudá-las. Porque se a China não ajudar a impedir a Rússia agora, essas armas ou subjugarão Putin definitivamente – indicando que elas poderiam ser usadas também contra a China algum dia, caso Pequim tome Taiwan – ou danificarão com tanta intensidade a economia russa que os efeitos irradiariam em todas as direções. Essas armas podem até fazer com que Putin faça o impensável com suas armas nucleares, o que poderia desestabilizar e até destruir as fundações globais sobre as quais o futuro da China se escora.
Bomba Econômica. A inovação mais importante desta guerra é o uso do equivalente econômico a uma bomba nuclear, simultaneamente acionada por uma superpotência e pessoas superempoderadas. Os EUA, juntamente com a União Europeia e o Reino Unido, impuseram sanções sobre a Rússia que estão incapacitando sua economia, ameaçando criticamente empresas do país e despedaçando as economias de milhões de russos a uma velocidade e um escopo sem precedentes, o que traz à mente uma explosão nuclear.
Putin já entendeu isso tudo – e falou isso explicitamente no sábado: EUA – e UE – aplicaram sanções "que equivalem a uma declaração de guerra" (Vladimir, você ainda não sentiu nem metade dessa dor).
Em segundo lugar, pelo mundo ser atualmente tão conectado, indivíduos superempoderados, empresas e grupos de ativismo social são capazes de aplicar suas próprias sanções e boicotes, sem nenhuma ordem de governos, amplificando o isolamento e o estrangulamento da economia da Rússia para além dos níveis que os Estados-nação tendem a alcançar. Esses novos atores – um tipo de movimento global específico pró-resistência na Ucrânia – estão cancelando coletivamente Putin e a Rússia. Raras vezes, talvez nunca, um país tão grande e poderoso foi cancelado politicamente e incapacitado economicamente com tanta rapidez.
A terceira arma é tanto nova quanto antiga, uma arma espiritual e emocional: o Ocidente redescobriu sua voz. Diante do ataque cruel e primitivo da Rússia contra uma democracia falha, mas inspiradora, como a Ucrânia, o mundo livre foi despertado. Os EUA e as sociedades liberais em geral podem com frequência parecer divididas e agindo de maneira estúpida – até que não. Pergunte a Adolf Hitler.
Essas três armas deveriam ser suficientes para chamar a atenção da China. Então vejamos mais de perto como elas operam na prática. O governo de Joe Biden, num esforço para dissuadir Putin, formulou um poderoso pacote de sanções econômicas profundas e abrangentes e avisou o líder russo que, se ele invadisse a Ucrânia, estaria arriscando tudo – a viabilidade econômica de seu país e seu regime.
Bolsa. O mercado de ações com base no rublo foi fechado desde que as maiores instituições financeiras russas foram ou colocadas sob sanções ou extirpadas do sistema da Sociedade para as Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais (Swift), noticiou a Barron's, mas "as empresas russas denominadas em dólar na bolsa de Londres ainda estão negociando. A destruição do valor de mercado é estarrecedora". A revista acrescentou que o valor das ações do Sberbank, o maior banco da Rússia, "despencou mais de 99% desde meados de fevereiro, quando eram negociadas a US$ 14". Na última quarta-feira, notou a Barron's, "seu valor tinha despencado para US$ 0,01".
Desde que Putin enfrentou sanções em 2014 por anexar a Crimeia e fomentar a rebelião no leste da Ucrânia, ele reuniu reservas em moeda estrangeira e ouro – algo em torno de US$ 630 bilhões – para tentar blindar a Rússia de mais sanções globais dando ao Banco Central do país toda a munição que a instituição precisaria para proteger o valor do rublo. Mas a coisa não foi conforme ele planejou. "Ocorre que a estratégia de reservas estrangeiras da Rússia tem uma grande falha: aproximadamente a metade desse dinheiro é mantida no exterior, em bancos estrangeiros – e agora a Rússia não consegue acessá-lo" por causa das sanções. Então, as economias em rublo dos cidadãos russos estão sendo dizimadas.
Criatividade. Agora adicione as sanções, os boicotes e os pontos de pressão vindos de atores não estatais superempoderados. Meu favorito é Jack Sweeney, um estudante de 19 anos que frequenta a Universidade da Flórida Central e criou um perfil de Twitter – @RUOligarchJets, ou Jatos de Oligarcas Russos – que rastreia o movimento e a posição de aviões particulares de bilionários russos próximos a Putin. "Ainda que o rapaz de 19 anos não seja a única pessoa a oferecer tais serviços", notou a Bloomberg, o que diferencia sua página é o "fácil acesso e a cativante visão" que oferece sobre as vidas dos comparsas de Putin. O perfil acumulou 53 mil seguidores em poucos dias e agora tem mais de 400 mil. Individualmente, Sweeney está dificultando para os amigos de Putin esconder sua riqueza ilícita.
É a globalização do ultraje moral: vai desde assistir um curto vídeo online que mostra soldados russos disparando contra uma usina nuclear ucraniana até o funcionário que posta esse vídeo em sua página de Facebook num grupo de colegas ou manda o vídeo por e-mail para seu chefe ou envia pelo aplicativo de mensagens Slack – e não para pedir aos diretores-executivos que façam algo a respeito, mas para lhes dizer que eles têm de fazer alguma coisa, senão perderão funcionários e clientes.
A BP, por conta própria, afirmou que estava abandonando suas operações na Rússia, após cerca de 30 anos trabalhando com uma petroleira do país. Para a Rússia, perder o talento da engenharia na indústria do petróleo da BP é um golpe pesado.
A Rússia e os russos estão sendo cancelados em todas as direções – de bailarinas a times de futebol, a orquestras. E quando o frenesi de cancelamento torna-se global, age de forma impiedosa. Como o New York Times noticiou na semana passada, "Um dia depois dos organizadores dos Jogos Paralímpicos de Inverno anunciarem que permitiriam a participação de atletas russos e belarussos na competição, a direção do evento reverteu sua posição de maneira impressionante e barrou atletas de ambos os países na véspera da cerimônia de abertura".
Essas inovações engendram, porém, dois grandes perigos. Se a bomba nuclear econômica que os EUA e seus aliados acabaram de detonar na Rússia arrasar sua economia tão rapidamente e profundamente como eu suspeito que arrasará, há o perigo, apesar de remoto, de que Putin chegue a extremos maiores, até mesmo extremos impensáveis, como lançar uma arma nuclear real.
Irreversível. O segundo perigo – e a China, em particular, deveria manter isso em mente – é que quando os Estados-nação escolherem suspender as sanções, em algum ponto, por razões essencialmente de realpolitik, os atores não estatais poderão não seguir a toada. Essas organizações são altamente descentralizadas.
O Anonymous, o consórcio global de hackers, anunciou que estava tentando derrubar websites russos, mas sem atender ordem de nenhum governo. Para quem a Rússia deve telefonar se quiser propor um cessar-fogo para o Anonymous?
Putin foi um total ignorante a respeito do mundo em que vive, e assim ele apostou todas as suas fichas no cassino global da globalização do século 21, onde, no fim, a casa sempre ganha – ou não sobrevive.
Há sinais de que a China reconhece algumas dessas nova realidades – que nenhum país é grande demais para que não possa ser cancelado. Mas seu instinto inicial parece ser tentar se isolar dessa realidade, em vez de se apresentar para ajudar a reverter a agressão de Putin. Ao que respondo: boa sorte com isso. A China não pode ser conectada e desconectada ao mesmo tempo.
Então, espero não apenas que os líderes chineses não arrisquem tudo numa conquista rápida de Taiwan. Espero que Pequim, em vez disso, se junte ao Ocidente e a quase todo o restante do mundo em oposição a Putin. A China poderia emergir como um verdadeiro líder global se o fizer. Mas se escolher, em vez disso, alinhar-se com os foras da lei, o mundo ficará menos estável e menos próspero até onde a vista puder alcançar – especialmente para a China. Qual vai ser, então, Xi? /Tradução de Guilherme Russo
Colunista de Assuntos Internacionais e ganhador de três Prêmios Pulitzer