O Estado de S. Paulo, n. 46894, 09/03/2022. Notas & Informações, p. A3

Guerra à razão


 

A guerra é sempre um mal, mas pode ser um mal menor, se for uma guerra justa. Não é o caso da guerra de Vladimir Putin. Ela é moralmente condenável e juridicamente ilegal. Tecnicamente é um “crime de agressão” ou “crime contra a paz”, conforme a tipificação do Tribunal Penal Internacional. O próprio Putin sabe disso. Daí a insistência em propagandear o eufemismo “Operação Militar Especial” e hipérboles como a “Ucrânia nazista”, a “falsa Ucrânia”, a “Grande Rússia”, o “genocídio” contra russos ou a “agressão” da Otan.

Analistas e lideranças sensatas não têm dúvidas sobre a ilegitimidade das ações de Putin. A divergência é sobre como lidar com o seu poder. O realismo impõe que retaliações e concessões sejam calculadas para evitar males maiores, como o massacre de civis ucranianos ou o choque entre potências nucleares.

Mas no Brasil e no mundo boa parte do debate público, deturpado por distorções ideológicas, interesses políticos, torpeza moral e confusão mental, tem passado ao largo dessa discussão. Facções retrógradas e autoritárias da esquerda e da direita se veem unidas em relativizar os crimes Putin, equiparando responsabilidades do governo russo e do ucraniano ou da Rússia e da Otan, quando não as subvertendo por completo.

Na raiz destas distorções parece estar uma crise existencial do Ocidente. No caso dos conservadores, ela se traduz em uma nostalgia de um Ocidente quimérico. No caso dos progressistas, em uma obsessão antiocidental. Por uma alquimia ideológica tóxica, o autocrata imperialista russo personificaria, para os primeiros, a restauração de valores ocidentais degradados pelos progressistas, e, para os segundos, a represália às agressões do hegemonismo ocidental.

Entre os reacionários houve divisão. Há os que se posicionaram contra a Rússia, pela aliança com a China em um eixo de dominação “globalista”. Mas há os que simpatizam com Putin justamente por sua afirmação do nacionalismo e sua cruzada supostamente religiosa contra a diversidade sexual, o multiculturalismo, o relativismo e outros ingredientes que compõem a “decadência” ocidental.

O presidente Jair Bolsonaro já prestou “solidariedade” ao agressor e continua se negando a condenar a agressão, mantendo-se numa posição de “neutralidade”, supostamente em defesa dos interesses nacionais, mas indisfarçavelmente por sua simpatia em relação a Putin, tão grande que mesmo sua batida e plausivelmente patológica analogia sexual para exprimir alianças políticas se mostrou insuficiente: “Um casamento mais que perfeito” foi a metáfora com que expressou seus sentimentos para com o autocrata.

Aqueles na esquerda obcecadamente fixados em tudo o que for antiamericano e antiocidental já apoiaram o regime dos aiatolás, na revolução iraniana, e agora apoiam uma das lideranças mais reacionárias do mundo.

Os senadores do PT reagiram à invasão da Ucrânia condenando “a política de longo prazo dos EUA de agressão à Rússia e de contínua expansão da Otan”. A nota foi retirada, não por convicção, mas por conveniência política, para não esgarçar a fantasia de moderado vestida por Lula na corrida eleitoral. O próprio Lula, de início, equiparou russos e ucranianos, fazendo apelos genéricos a ambos para baixar as armas em nome da “paz” e do “amor”. Seus aliados no Foro de São Paulo e representantes e simpatizantes do PT, PSOL e PCDOB continuam papagaiando a propaganda de Putin e advogando que o grande responsável pela guerra é o expansionismo do Ocidente.

Na maior parte dos conflitos, dificilmente há um lado inequivocamente errado e outro certo. Na guerra da Rússia contra a Ucrânia há. Já na guerra entre os radicais de esquerda e os de direita, a ironia é que, quando os primeiros elegem Putin como porta-bandeira de sua campanha de libertação da opressão do “Ocidente” sobre o progressismo, e os segundos contra a opressão do “progressismo” sobre o Ocidente, ambos estão errados e suas ilusões fortalecem o maior inimigo dos valores que dizem professar.