O Globo, n. 31546, 20/12/2019. Rio, p. 17

Flagrante de descaso: morte na calçada

Felipe Grinberg
Saulo Pereira Guimarães


Há pelo menos dois dias, um homem, ainda sem identificação, de cerca de 45 anos, peregrinava, com o rosto consternado de dor, pela Coordenação de Emergência Regional do Centro, que fica ao lado do Hospital Municipal Souza Aguiar. Com hemorragia interna, ele foi encontrado morto ontem, por volta das 9h, do lado de fora da unidade, pela equipe médica que finalmente iria atendê-lo, de acordo com a prefeitura. Mas imagens obtidas com exclusividade pelo GLOBO mostram dois homens, de terno e gravata, roupa semelhante ao uniforme dos seguranças da CER, empurrando a mesma pessoa, agonizando, numa cadeira de rodas. Às 5h08, o homem, que seria um morador de rua, é deixado na calçada onde iria morrer algumas horas depois sem socorro.

Após a descoberta do vídeo na noite de ontem, a Secretaria municipal de Saúde foi ouvida mais duas vezes. Na primeira nota, manteve a versão de que não houve atendimento ao homem de madrugada, mas que abriria uma sindicância. Na segunda, por volta das 21h, quando as imagens já tinham sido divulgadas no site do jornal, afirmou que a conduta não é “preconizada pela secretaria, pela direção do Hospital Municipal Souza Aguiar e pela Coordenação de Emergência Regional do Centro”.

O Rio vive uma crise financeira que tem reflexos, principalmente, na área da Saúde. Os funcionários de OSs — que administram clínicas da família, hospitais e CERs — só começaram a receber os salários de outubro e novembro esta semana. A expectativa é que apenas hoje todos os 20 mil servidores terceirizados, que foram reivindicar seus direito ao Tribunal Regional do Trabalho (TRT), tenham seus vencimentos pagos.

Para isso, R$ 252 milhões do caixa do município foram arrestados, o que agravou a situação do Tesouro. Na última segunda-feira, a prefeitura chegou a suspender todos os pagamentos a fornecedores por meio de um decreto que foi revogado ontem. Ao mesmo tempo, o arresto gerou incertezas sobre o pagamento do 13º do funcionalismo municipal, que deveria ter sido pago no dia 17.

‘Foi uma coisa desumana’

O vídeo a que O GLOBO teve acesso indica que o homem passava mal e parecia vomitar. Nesse momento, é possível perceber que um dos que o levaram até a calçada se afasta até o meio-fio também com uma crise de vômito. Tudo se passa em segundos. Logo depois, há uma rápida interrupção nas imagens, e, às 5h09, os dois homens já são vistos indo embora apenas com a cadeira de rodas. O doente fica caído no chão e ainda se movimenta.

— Ao chegar à loja, os vi saindo da CER. E eles deixam o homem na calçada. Ele estava se debatendo de dor e vomitava um líquido preto. Quando saí da loja, às 7h20, ele já estava morto — contou Ancelmo Gomes, comerciante de 42 anos, que trabalha na Rua Frei Caneca, em frente ao local.

— Foi uma coisa desumana, mas esse é o prefeito que temos.

Dono de outra loja que funciona também na região, Sandro Lúcio, de 43 anos, afirmou ter visto o morador de rua pela manhã. De acordo com o comerciante, por volta das 6h30m, o homem ainda estava vivo.

— Ele estava sentado, de braços abertos e muito inchado, parecia quadro de cirrose. Pedia ajuda. Já ouvi comentários de que, de madrugada, o pessoal da CER retira pacientes da unidade e os coloca na calçada.

Encontro de cadáver

Uma vendedora ambulante, que preferiu não se identificar, disse que conversou algumas vezes com o morador de rua:

— Já o vi por aqui outras vezes. Ele me pediu ajuda e dei pipoca e comida, além de dinheiro de passagem. Ele disse que era da Bahia e que já esteve internado aqui e saiu bem. Falou que ia para a Tijuca, mas foi para a rua aqui de trás. Era usuário de drogas — relata.

— Conversamos ontem (quarta-feira), e ele me disse que estava na Mangueira. Hoje (ontem), ele morreu.

A partir desses relatos, os repórteres do jornal foram buscar mais informações sobre o homem e, entre as fotos feitas no acesso à unidade nos últimos dias, identificaram a vítima ao lado de outros doentes que faziam uma via-crúcis por socorro médico. No dia 17, ele estava deitado num banco de concreto que fica na área onde pacientes aguardam por atendimento. Coberto por um lençol, ele parecia dormir. Em imagens do “RJ-TV”, da Rede Globo, também é possível vê-lo, em outro flagrante, acordado e reclamando de dores.

Às 8h10m de ontem, a câmera flagra a chegada de um veículo da Polícia Militar ao ponto onde estava a vítima. Os policiais teriam chamado o socorro do Corpo dos Bombeiros, mas o homem já estava morto. A 4ª DP (Praça da República) abriu inquérito para investigar encontro de cadáver. Uma perícia, segundo a polícia, já foi feita no local.