Correio Braziliense, n. 20696, 21/01/2020. Política, p. 4

Juiz das garantias é avanço

Entrevista: Rogério Schietti



Integrante de uma turma criminal do Superior Tribunal de Justiça, o ministro Rogério Schietti vê com bons olhos a adoção da figura do juiz das garantias. Ele considera a medida importante para esclarecer o papel de cada personagem no processo penal. O ministro reconhece que o Judiciário tem uma estrutura enorme e tem processos longos, mas ressalta iniciativas para desburocratizar as práticas nos tribunais. O magistrado foi o entrevistado do CB Poder de ontem. Leia os principais trechos da entrevista.

O que há de novo na figura do juiz das garantias?

O juiz das garantias é uma figura que já existe em vários países. É um avanço, agora precisaremos saber como colocar em prática essa figura, porque o Brasil é um país continental. Todos os países que já fizeram uma reforma na sua legislação processual penal criaram algo similar ao que nós chamamos juiz das garantias. É um juiz que vai cuidar do controle de legalidade da fase de investigação criminal — portanto antes do processo — e também um juiz que eventualmente vai decretar uma prisão preventiva, uma busca e apreensão, determinar uma interceptação telefônica, aquelas providências que a Constituição determina que só um juiz pode fazer. A partir do recebimento da denúncia, quando começa o processo, um segundo juiz passa a atuar. Aquele juiz das garantias fica de lado, e passa a atuar no processo o juiz que vai instruir, recolher a prova e julgar o acusado.

Tem gente para tudo isso?

Essa é a questão. Temos hoje cerca 18 mil juízes no Brasil. É um número insuficiente. Há mais de 4 mil cargos vagos. Seria importante que tivéssemos um número maior de juízes, porque cerca 20% dos municípios não têm um juiz titular, então isso exige um deslocamento de juízes entre várias comarcas, para que possam dar conta de tantas atribuições, não só criminais, como também de família, de questões urbanísticas, ambientais etc. O Conselho Nacional de Justiça tem um grupo instituído por seu presidente, ministro Dias Toffoli, que está analisando como vai ser a divisão das competências: a competência de supervisionar as investigações, e a competência de julgar o processo.

Mas no sistema jurídico brasileiro, o Ministério Público pode pedir medidas que são feitas normalmente na fase do inquérito, como a prisão de um réu. O juiz de instrução pode deferir ou indeferir o pedido. Não é contraditório?

De um certo modo, sim. A ideia é de que um juiz que vai julgar não tenha tido contato com as provas recolhidas durante a investigação. Principalmente quando ele tem que determinar uma medida mais drástica, como uma prisão preventiva. Por quê? Porque, quando o juiz vai decretar uma prisão provisória, ele tem que analisar as provas e justificar a decisão. Então, quando ele toma uma decisão prendendo alguém durante o processo, talvez ele já esteja psicologicamente tendente a condenar. A justificativa do juiz das garantias, com essa separação de funções, é preservar o juiz que vai julgar dessa afetação psicológica que talvez ele desenvolva. Normalmente essas medidas cautelares são decretadas durante a investigação. Mas nada impede que isso ocorra também durante o processo. Então, nessa hipótese, a pergunta faz todo o sentido.

O juiz das garantias já existe em outros países, mas aqui no Brasil surgiu em meio à discussão da Vaza-Jato.

O juiz das garantias faz parte de um projeto de lei de reforma do código de processo penal que tramita desde 2009 no Congresso. Foi aprovado no Senado e hoje tramita na Câmara. Ele foi inserido na undécima hora dentro do projeto assim chamado da lei anticrime, que é um projeto oriundo do poder executivo, do ministro da Justiça (Sérgio Moro). Lá no final da tramitação, importaram esses outros dispositivos do projeto de código de processo penal para dentro da lei anticrime. Foi uma surpresa para todo mundo, porque não se esperava que um projeto que tinha uma característica de ser mais duro — com proposta de endurecer a legislação penal, aumentar as penas, dificultar a progressão de regime, eliminar benefícios da execução penal — viesse com dispositivos garantistas.

Outra novidade do pacote anticrime é chamada cadeia de custódia das provas: são as regras de como devem ser tratadas as provas, desde a fase da busca e apreensão até a conclusão do inquérito. Isso vai criar muito debate ainda no processo penal?

Esse é um ponto sobre o qual pouco se tem comentado e é muito importante. De fato, não temos uma preocupação como existe em outros países com a preservação da prova. Nâo há um isolamento da prova, do corpo etc. Muitas vezes, depois de recolhidos os vestígios do crime, eles não são preservados na sua integridade. A reforma também se preocupou com isso e incluiu vários dispositivos preservando essa prova. O problema é que, ao fazê-lo, trouxe uma série de minudências, que caberiam mais em uma regulação administrativa. Trouxe para o Código de Processo Penal muitos detalhes que talvez possam gerar nulidades processuais. Isso terá de ser decidido pelos tribunais na aplicação desses dispositivos.

Isso vai tumultuar os tribunais.

Já estou esperando uma quantidade imensa de habeas corpus, tão logo se verifique o descumprimento de uma dessas medidas.

Existe algo suspeito nas conversas da Vaza-Jato?

Acho um pouco complicado falar sobre isso porque o que nós temos são vazamentos de áudios entre integrantes da força-tarefa do Ministério Público e também talvez eu venha eventualmente a analisar alguma dessas questões quando submetidas ao Judiciário. O que posso dizer de uma maneira clara é que isso ocorreu — se de fato ocorreu — porque no Brasil não temos uma clara divisão entre as funções de acusar e julgar, muitas vezes há uma certa sobreposição. Isso não é defeito do promotor ou do juiz. Isso é pela própria estrutura do processo penal, que essa lei do juiz das garantias tenta aprimorar. Pela reforma, o juiz não pode fazer as vezes de acusador. A lei atual, antes da reforma, acaba permitindo que o juiz tenha um protagonismo maior do que deveria ter. O juiz foi feito para recolher a prova e julgar. Ele não pode atuar como um segundo acusador. Essa função é do Ministério Público. Então é uma deficiência estrutural, que nos criou uma certa confusão. O novo Código de Processo Penal, que está sendo objeto de análise no Congresso, vai nessa direção, de melhorar essa clareza das diversas funções que cada personagem ocupa no processo penal.

O que o senhor tem a falar às pessoas que dizem que o Judiciário brasileiro é caro e ineficiente?

O Judiciário brasileiro tem seus problemas. Um deles talvez seja o custo, que é enorme. Manter uma estrutura enorme – Justiça trabalhista, Justiça militar, Justiça criminal, Justiça federal – implica a necessidade de quase 20 mil juízes. E os procedimentos nem sempre são ágeis. Os processos no Brasil demoram muito, isso é fato. Mas existem iniciativas positivas. O CNJ e os tribunais buscam aperfeiçoar as práticas judiciárias.