O Globo, n. 31546, 20/12/2019. Sociedade, p. 35

19 anos de prisão: condenado
Cristina Fibe
Constança Tatsch
Paula Ferreira


João Teixeira de Faria, o João de Deus, foi condenado ontem a 19 anos e quatro meses de prisão por crimes sexuais cometidos contra quatro mulheres durante atendimentos espirituais na Casa de Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia, Goiás.

Foi a primeira condenação de Faria por esse tipo de crime — ele está preso preventivamente há um ano, no Complexo Penitenciário de Aparecida de Goiânia, e já foi condenado por posse ilegal de armas.

Ontem, a juíza Rosângela Rodrigues o condenou por violação sexual mediante fraude, contra duas vítimas, e por estupro de vulnerável, contra outras duas mulheres. Duas delas são do Distrito Federal, uma é de São Paulo e a outra, de Goiás.

Para o promotor Luciano Miranda Meireles, do Ministério Público de Goiás, a condenação de João de Deus é “um marco” e demonstra que ninguém está acima da lei.

— Ainda que de primeiro grau, é uma condenação judicial. Até então, não havia manifestação decisiva do Poder Judiciário a respeito dos crimes sexuais, então é um marco. Simbolicamente, a Justiça está sendo feita para essa enormidade de vítimas que acreditaram no Ministério Público. E isso demonstra que não existe ninguém acima da lei, felizmente, no Brasil hoje em dia — afirmou Meireles.

Segundo ele, “a força tarefa continua” pois a promotoria ainda tem 80 vítimas, entre crimes que estariam prescritos ou não, que serão objeto de análise para eventuais novas denúncias.

Um novo pedido de soltura do médium foi negado ontem mesmo pela juíza, mas instâncias superiores, do próprio Tribunal de Justiça de Goiás ou do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ainda podem concedê-lo. Rosângela Rodrigues afirma que já rejeitou cerca de dez pedidos de soltura.

A magistrada refutou as críticas de morosidade na tramitação do processo, que levou quase um ano para ser julgado. Ela diz que há apenas quatro funcionários na comarca de Abadiânia e que os processos são demorados por envolverem vítimas de outros estados.

Atualmente, no presídio de Aparecida de Goiânia, João de Deus está separado dos outros presos por questão de segurança.

— Ele corria risco de morte, o que não é interesse de ninguém. A gente quer ver a Justiça acontecer — disse Rosângela, acrescentando que não teme pela própria segurança.

— Nunca me vi sob ameaça. Quem procura fazer justiça não tem que temer. Quando o réu é acusado justamente, lá no fundo ele sabe. Ele só se torna perigoso quando a sentença é injusta.

Defesa

A defesa de João de Deus vai recorrer diretamente ao TJ de Goiás para tentar reverter a condenação, mas descarta a possibilidade de que ele seja solto antes do fim do recesso do Judiciário, no dia 20 de janeiro.

Os advogados pretendem cancelar as denúncias de 45 das vítimas sob argumento de que os crimes teriam prescrito, uma vez que essas mulheres não tinham representado o caso na Justiça em até seis meses do fato.

Rosângela, no entanto, afirmou que já havia excluído das denúncias nove vítimas com esse perfil.

A defesa insistirá ainda no pedido para que João de Deus cumpra pena em casa. Segundo o advogado do líder espiritual, ele está “morrendo aos poucos”.

— Reiteramos mais uma vez o estado de saúde dele, que é lastimável. São doenças da própria idade que, somadas ao ambiente do cárcere, têm catalisado esse processo de morte a que estamos assistindo lentamente — diz o advogado de defesa Anderson Van Gualberto.

A promotoria, por outro lado, espera que ele cumpra sua pena na prisão.

— Em relação ao estado de saúde, é interessante recordar que o assunto foi objeto de discussão da junta médica do estado de Goiás, do Tribunal de Justiça, e essa junta determinou que ele apresenta plenas condições, tanto psíquicas quanto clínicas, de cumprir condenação no cárcere.

O médium foi denunciado 13 vezes pelo Ministério Público de Goiás, duas delas por posse ilegal de armas. As outras 11 envolvem 57 vítimas cujos crimes de abuso sexual não prescreveram. Mais de 300 mulheres tiveram seus depoimentos tomados pelo MP e pela Polícia Civil, em casos de estupro que vão de 1973 a 2018.

A promotoria de Goiás considera este o maior caso de abuso sexual do Brasil, quiçá do mundo, pelo espaço de tempo (45 anos) e número de vítimas (319), entre as prescritas e não prescritas registradas até agora pelo MP.

João de Deus está preso preventivamente desde 16 de dezembro de 2018, após se entregar à Polícia Civil em uma estrada de terra em Abadiânia, no interior de Goiás. A prisão aconteceu cerca de uma semana após o“Conversa com Bial ”, da TV Globo, e O GLOBO mostrarem relatos de doze mulheres que diziam ter sido sexualmente abusadas por ele.

“Ele vai pagar pelo que fez a todas as mulheres”, diz vítima do médium

A primeira condenação de João Teixeira de Faria por crimes sexuais, na tarde de ontem, dá às vítimas a “sensação de justiça sendo feita”, segundo uma delas, ouvida pelo GLOBO.

— Estou com um sorriso que não sai do meu rosto. Ele seria o novo Chico Xavier, ele ia enganar o mundo inteiro. Então estou extremamente feliz. É a primeira condenação de muitas que virão — afirma a carioca Ana, de 37 anos, cujo sobrenome foi preservado.

Ela foi vítima do médium entre 2006 e 2007, época em que morou em Abadiânia e procurou a Casa de Dom Inácio de Loyola em busca de ajuda para um câncer de seu pai. Segundo ela, João de Deus a chantageava para estuprá-la, afirmando que a cura do pai passava por ela e que ele morreria se ela não se submetesse.

— Ele prejudicou muitas mulheres, nós nos unimos e conseguimos derrubar uma pessoa que era praticamente intocável. É muito bom, de alguma maneira, poder acreditar que justiça ainda existe no país.

Depois que seu pai morreu, Ana se deu conta da violência que sofreu. Quando as denúncias de outras vítimas vieram à tona, ela procurou o Ministério Público de Goiás, mas seu caso foi considerado prescrito, pelo tempo decorrido.

— Há 13 anos que eu tento de alguma maneira prender João de Deus. O que ele fez comigo prescreveu, mas de alguma maneira eu consegui, ele vai pagar pelo que fez a todas as mulheres, mesmo aquelas cujo crime prescreveu. Isso é maravilhoso. Isso é justiça — diz Ana, emocionada.

— Eu choro de felicidade. Eu não sou vítima, eu sou sobrevivente.