O Estado de S. Paulo, n. 46895, 10/03/2022. Política, p. A3

Bolsonaro ignora a laicidade do Estado


 

Jair Bolsonaro nunca governou. Desde o início do mandato, o presidente sempre esteve em campanha, seja em momentos de folga, que são muitos, seja no horário de expediente, como constatou recente reportagem do Estadão.

Na terça-feira passada, duas horas da agenda de Bolsonaro, que deveria estar repleta de compromissos de Estado em razão das múltiplas crises que o Brasil enfrenta, foram dedicadas a um encontro com pastores e religiosos evangélicos, exigindo mobilizar a estrutura da Presidência. O assunto foi um só: as eleições de outubro. No dia anterior, o encontro, sobre o mesmo tema, havia sido com pecuaristas.

Parece que, para Bolsonaro, não há legislação eleitoral – a impedir o uso da máquina pública para fins eleitorais – e, principalmente, que não existe um país a ser governado. Vale lembrar que o mandato presidencial não é tempo de ócio, disponível para ser preenchido com assuntos eleitorais familiares. É período de trabalho.

Mas Bolsonaro jamais trabalhou nem pretende começar agora. Em vez disso, promete, num eventual segundo mandato, franquear o exercício da Presidência a terceiros – no caso, os pastores evangélicos com quem Bolsonaro se reuniu em um de seus comícios irregulares nas dependências do Estado. Na ocasião, disse o presidente: “Eu dirijo a nação para o lado que os senhores assim desejarem”.

Essa promessa é absurda por sugerir que Bolsonaro entregará o mandato recebido dos eleitores a um determinado grupo social, cujos interesses particulares não correspondem necessariamente aos do conjunto da sociedade. Mais: sendo esse grupo um segmento religioso, Bolsonaro estará violando um limite imprescindível do Estado Democrático de Direito, isto é, o caráter laico do Estado.

Eis o descaramento da indigência intelectual, propositiva e institucional do bolsonarismo. Sem ter o que apresentar – seja em termos de realização do governo, seja em propostas de políticas públicas para o País –, Bolsonaro anuncia simplesmente que terceirizará a condução da administração federal. A bem da verdade, Bolsonaro já faz isso, ao entregar o governo ao Centrão, mas a promessa de privilegiar um grupo religioso vai muito além, pois é cabal descumprimento do compromisso, assumido no dia em que Jair Bolsonaro tomou posse no cargo, de respeitar e defender a Constituição de 1988.

Diante do despautério bolsonarista, é preciso recordar que a separação entre Igreja e Estado, com a necessária neutralidade da máquina estatal a respeito de questões religiosas, é princípio inegociável. Proclamada em 1889, a República veio precisamente desvincular o Estado da religião. A promessa de submeter a administração federal a ideias e valores de um grupo religioso é retrocesso inconcebível e inaceitável, a merecer a mais firme oposição.

A oferta de Bolsonaro aos pastores evangélicos é coerente com a guerra particular que os bolsonaristas travam contra o Estado Democrático de Direito. Com suas homenagens a torturadores e milicianos, Bolsonaro relativiza direitos e garantias fundamentais; com suas ofensas e discursos misóginos, desrespeita a dignidade das mulheres; com seus elogios à ditadura militar, debocha das liberdades cívicas. E agora subverte a própria noção do poder público, que, em vez de atender todos, está explicitamente orientado a servir a uma pauta religiosa.

Na promessa de Bolsonaro aos pastores, há uma concepção ignorante e autoritária de poder do Estado. Mas há também oportunismo eleitoral pouco honroso. Para agradar à plateia, o ex-capitão não tem limites éticos ou institucionais. Fala o que for preciso. Negocia até o que não tem. Por força da Constituição, o Estado brasileiro é absolutamente incapaz de ser submetido a determinado credo religioso. Dessa forma, Jair Bolsonaro manifesta, com sua campanha eleitoral, ser a antítese da liderança. Não tem nada a propor. Apenas se oferece e oferece sua obediência a quem puder lhe trazer votos.

Além de inconstitucional, a promessa de submissão do Estado a líderes religiosos é um jeito certeiro de fugir do debate sobre os problemas nacionais e as possíveis soluções. A César o que é de César.