Título: Surto de falta coletiva de decoro
Autor: Villas-Bôas Corrêa
Fonte: Jornal do Brasil, 18/03/2005, Outras Opiniões, p. A9
Com a eleição do nobre deputado Severino Cavalcanti para presidente da Câmara, na rebelião dos mansos do baixo clero, com a ajuda irresponsável da oposição, um surto demencial de falta coletiva de decoro desmontou a maioria governista, deixou o presidente Lula à deriva e ensandeceu o plenário, contaminado pela insensatez da Mesa Diretora, na orgia de gastos para multiplicar mordomias, vantagens e benefícios que transformaram o mandato de representante do povo num dos melhores empregos do mundo. O último avanço despudorado no cofre da Viúva foi ruminado no silêncio rancoroso do presidente Severino, com a derrota na tentativa de cumprir, em cima da posse, o compromisso prioritário da sua plataforma corporativista de aumentar os subsídios dos deputados, aplicando a tática marota ensinada pelo ministro Nelson Jobim, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), na aula magna proferida no gabinete do novo astro, para driblar improváveis resistências do plenário, com a ginga de corpo de apelar para o recurso do ato administrativo, da dócil e solicita Mesa Diretora.
A inesperada reação do presidente do Senado, senador Renan Calheiros, jogou água no chope, estragando a festa. No primeiro impulso da desgastante derrota, o bravo Severino espalhou cobranças de traição para todos os cantos, decretou o enterro do presente do aumento dos 15 subsídios anuais de R$ 12.740 para o teto dos vencimentos de ministros do STF de R$ 19.115. Por pouco tempo. Pois o lance, em dois tempos, encaixa a aprovação do projeto de lei, encaminhado ao Congresso pelo ministro Nelson Jobim, presidente do STF, elevando os vencimentos dos ministros para R$ 21.500, com o previdente anexo de novo reajuste, em 2006, para R$ 24 mil e quebrados. Com natural extensão aos subsídios parlamentares.
Durante duas semanas, o pernambucano Severino ruminou a desforra. Retemperou o ânimo na visita ao seu feudo eleitoral, ensaiou passos de frevo no Recife, passou o recado subliminar de que empurraria as suas promessas com os fieis eleitores do baixo clero com o umbigo exposto.
No alto nível da rasteira ladina, à sorrelfa, juntou a solidária turma da mesa no palácio à margem do Lago Paranoá, residência chique do presidente da Câmara e apresentou a proposta do aumento de 25% da verba do gabinete privativo dos deputados, no salto acrobático da mixaria de R$ 35 mil mensais para 44.187, a partir de ontem. Nada de votação pelo plenário, com críticas de meia dúzia de exibicionistas da oposição. Ato da Mesa Diretora, aprovado pela entusiástica unânime dos 11 presentes. Comunicada ao plenário, na sessão da tarde de quarta-feira foi recebida por apoteótica aclamação, com gritos de júbilo, abraços, saltos, mãos para o alto.
Assim, a frio, não dá para entender tanta alegria. Afinal, a tal verba de gabinete destina-se a contratação de até 20 assessores para cada um dos 513 deputados, mesmo dos que raramente passam, como gato em teto de zinco escaldante, pela Brasília que a maioria odeia, tanto que não mora, como todo mundo, no local de trabalho.
Na inexaurível criatividade aplicada na invenção de mordomias e vantagens, a verba dos gabinetes pode ser qualificada como a gordura que adere ao subsídio como o ganho oblíquo. Confirma o deputado Chico Alencar (PT-RJ), que a verba de gabinete ''tem brechas que permitem que o dinheiro acabe no bolso dos parlamentares''. Seja através do ramal do nepotismo, com a nomeação de parentes, ou de cupinchas que dividem a xepa com o benfeitor. Com tais malabarismos, os deputados passam a faturar, juntando o que jorra das muitas fontes, em média, mais de R$ 88 mil mensais. Como aumento de 15% dos servidores das duas Casas, o total bate no céu de brigadeiro de R$ 95 mil.
Por enquanto. O presidente Severino aguarda a cumplicidade do Senado para retirar da manga do paletó elegante as cartas para novos truques.
Como quem brinca com fogo no serralho do picadeiro, perto da lona inflamável que cobre o circo.
Villas-Bôas Corrêa (villasbc@uol.com.br) escreve às quartas e sextas-feiras nesta página