O Globo, n. 31546, 20/12/2019. País, p. 12

Década de rupturas: Cezar Peluso, ex-presidente do STF

Entrevista: Cezar Peluso


Presidente do Supremo Tribunal Federal durante o histórico julgamento do mensalão, Cezar Peluso, hoje com 77 anos, acredita que parte da sociedade busca um punitivismo contra os acusados de corrupção. “Ao juiz não cabe a missão messiânica de mudar a cultura da sociedade mediante condenações. Ao juiz cabe julgar”, afirma.

Por que hoje em dia é mais fácil para um brasileiro médio saber os nomes dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal do que dos titulares da seleção?

Começou com a transmissão das sessões de julgamentos do STF pela TV Justiça. Embora se trate hoje de um ponto insuperável — ninguém conseguiria evitar a exibição das sessões pois haveria acusações de falta de transparência —, é da natureza humana ter um comportamento diferente com as câmaras. Com a televisão, de certo modo, os juízes deixam de ser juízes e passam a agir como atores. Duvido que uma discussão a respeito de qualquer dos assuntos tratados no Supremo teria os mesmos excessos verbais se fossem travadas em um ambiente reservado.

Na sua experiência, algum ministro teve o seu voto influenciado por estar exposto às câmeras?

Não farei avaliação de caráter subjetivo, mas há o risco e isso já é suficiente. É um subproduto desse ambiente de discurso de ódio em que as pessoas não suportam mais a diversidade de ponto de vista.

O senhor enxerga uma intimidação ao Judiciário?

Sem dúvida. O Judiciário hoje se defronta a uma intimidação exercida pelos canais da internet, que são as aspirações imediatistas das multidões. É fato público que certo juiz, ao conceder um habeas corpus na Lava-Jato que não podia ser negado, escreveu uma advertência: “Olha, estou concedendo, mas não sou contra a Lava-Jato”.

Mas a sociedade não tem direito de fiscalizar o Judiciário?

Sim, lógico, mas o problema é a cultura do punitivismo, inspirada nessa revolta muito justa contra a corrupção e também incentivada por certos setores da imprensa. Alguns ministros do STF, em certas circunstâncias, não podem sair à rua.

A origem dessa atenção ao STF está no julgamento do mensalão, em 2012. Qual foi o saldo?

O processo e o julgamento da ação 470 (mensalão) foi admirável. Tínhamos um relator muito rigoroso, o ministro Joaquim Barbosa, mas em nenhum passo daquele processo o STF foi leniente com a legalidade. Mas nasceu ali (no julgamento) a expectativa de que o Judiciário tem de ser sempre punitivo. Se for divulgado que certas pessoas são culpadas, independentemente do que se apure no processo segundo as regras legais e garantias constitucionais, setores da sociedade, inclusive da imprensa, querem que esses réus sejam punidos de qualquer maneira.

Qual efeito do punitivismo?

As pessoas não percebem que juízes não estão aqui para condenar ninguém. Essa não é a função do Judiciário. A função do Judiciário é de julgar, condenando quando houver provas produzidas segundo as regras legais e constitucionais, ou absolvendo em caso contrário. Combater a corrupção é competência da polícia, dos órgãos de controle e do Ministério Público. E aí entra outro aspecto: alguns juízes com mais vocação política do que de magistrado assumem esse papel messiânico de responder aos apelos da sociedade e, portanto, transformar o Judiciário como um órgão de condenação penal, e não como um órgão julgador.

O senhor está se referindo à Lava-Jato?

Em relação à Lava-Jato, me reservo não dizer o que eu penso a respeito das revelações do site The Intercept. Mas se, por hipótese, essas revelações forem verdadeiras, a ilicitude na aquisição dessas informações vai provocar uma discussão que vai terminar no Supremo Tribunal Federal: embora como prova ilícita não possa condenar ninguém, elas podem ser usadas para absolver alguém? Ou até para anular processo? O STF tem encontro marcado com essa questão.

Qual a sua posição?

Os diálogos obtidos ilegalmente não podem ser usados para condenar ninguém, mas é iniquidade dizer que não se pode usar prova ilícita para absolver um réu que, segundo esses dados, não cometeu o crime. O Direito não foi feito para isso.

Qual sua avaliação sobre os juízes que entram na política, como o ministro Sergio Moro, o governador Wilson Witzel, a senadora Selma Arruda?

Alguns têm mais vocação de políticos do que de magistrados, o que acaba sendo confirmado pelo fato de assumirem novas carreiras.

Como avalia as manifestações pedindo o fechamento do STF?

Demonstra que o Supremo é visto como grande artífice da legalidade e que está atrapalhando os propósitos de quebra dessa legalidade. É resultado desse clima de intimidação. Todo mundo é contra a corrupção, porque a corrupção é um mal, é crime, é danosa ao país. E como combate-se a corrupção? Nos limites da lei. O fato de o crime ser de corrupção não justifica que a lei seja abandonada.