Correio Braziliense, n. 20697, 22/01/2020. Mundo, p. 12

Duelo no início do julgamento de Trump

Rodrigo Craveiro


O primeiro dia do histórico julgamento político do presidente norte-americano, Donald Trump, ofereceu uma amostra da polarização entre republicanos, que detêm o controle do Senado, e os democratas. Governo e oposição travaram debates intensos sobre as regras que conduzirão o processo. Mitch McConnell, líder da maioria, propôs inicialmente que cada lado tivesse 24 horas para discutir as acusações contra Trump. Após o protesto dos democratas e a preocupação dos republicanos, ficou acordado que esta fase durará três dias, não mais dois. Os senadores também aceitaram acolher as evidências apresentadas pela Câmara dos Representantes contra o presidente, por meio do deputado Adam Schiff, chefe do Comitê de Inteligência que fará o papel de promotor.

McConnell apresentou um projeto de resolução para estabelecer restrições às provas e à participação de testemunhas, além de agilizar o julgamento. “A estrutura básica que estamos propondo é igualmente justa e equilibrada. Não há razão para que a votação desta resolução possa ser algo remotamente partidário”, declarou o republicano. Os democratas viram uma manobra para beneficiar Trump, e Chuck Schumer — líder da minoria no Senado — propôs uma emenda ao texto por meio da qual pedia ao chefe da Suprema Corte, juiz John Roberts, que intimasse o chefe de gabinete da Casa Branca, Mick Mulvaney, a entregar os documentos sobre o telefonema do presidente ao colega ucraniano, Volodymyr Zelensky. O magnata é acusado de pressionar Kiev a investigar o democrata Joe Biden, potencial adversário nas eleições de 3 de novembro, e o filho, Hunter Biden, em troca de uma ajuda militar de US$ 400 milhões.

Ontem, Schiff acusou McConnell de manter um processo “fraudado”. “Esse é o processo para quem não quer que o povo americano veja as evidências”, disse. “As regras de McConnell visam fazer com que o caso seja despachado o mais rápido possível para encobrir seus crimes”, acrescentou o democrata.

Com a proposta rejeitada por 53 votos a 47, Schumer interpôs nova emenda, solicitando que documentos e registros do Departamento de Estado sejam intimados por Roberts. Fontes próximas a McConnell afirmaram à rede de TV CNN que o julgamento deverá durar 10 dias. A previsão inicial é de que a votação ocorre em 31 de janeiro. “As regras (e processos) determinarão muito do que será permitido ou não. Tudo aponta para um julgamento muito curto”, admitiu ao Correio Alexander Gillespie, especialista em direito internacional e professor da Universidade de Waikato (em Hamilton, na Nova Zelândia). Ele aposta que as pretensões políticas de cada senador vão se sobrepor na hora do voto final. “Trinta e cinco dos 100 senadores estão de olho na reeleição. Manifestar-se contra Trump neste momento se mostra arriscado, pois ele é muito poderoso e vem ganhando popularidade durante a campanha”, acrescentou.

Reviravolta

Gillespie acredita na provável absolvição de Trump — a condenação exige dois terços dos votos (ou 51 senadores). Os democratas contam com 47 dos assentos no Senado. “Uma possível reviravolta seria se algumas testemunhas produzissem depoimentos prejudiciais para Trump, entre elas Mick Mulvaney (chefe de gabinete da Casa Branca) e Rudy Giuliani (advogado do presidente e ex-prefeito de Nova York). O único que pode realmente virar o bolo de cabeça para baixo é John Bolton (ex-conselheiro de Segurança Nacional). Ele talvez seja o único a ter algo importante que pudesse fazer com que alguns republicanos mudassem de lado”, comentou. O estudioso considera improvável tal cenário e alerta que, para que isso ocorra, Bolton — transformado em pária por Trump — teria de revelar algo capaz de “estremecer a Terra”.

Para Gillespie, em tese, os senadores republicanos começam o julgamento com o poder de ditar as normas. “A questão é que a forma como todo o processo será conduzido, com a possibilidade de convocar testemunhas ou não, será decidida pela maioria no Senado. Isso significa que novos depoimentos no plenário exigirão que ao menos quatro republicanos votem com os democratas.”

Trump se tornou o terceiro presidente na história dos Estados Unidos a ser julgado num processo de impeachment, depois de Andrew Johnson (1868) e de Bill Clinton (1999). O julgamento de Clinton durou cinco semanas e acabou na absolvição do democrata por perjúrio e obstrução da Justiça.

“Ninguém gosta de Sanders”, dispara Hillary

A ex-chefe da diplomacia americana Hillary Clinton (E) atacou o senador Bernie Sanders (D), 78 anos, um de seus principais rivais nas primárias democratas de 2016, assegurando em um documentário que “ninguém gosta dele”.  Clinton também se negou a dizer se apoiará ou não Sanders no caso de ele se tornar o adversário democrata do presidente republicano, Donald Trump, nas eleições de novembro. “Estive no Congresso durante anos. Somente um senador o apoiou”, disse Clinton, 72, em um documentário em quatro partes que estará disponível na plataforma de streaming Hulu em março. “Ninguém gosta dele, ninguém quer trabalhar com ele, não conseguiu nada. É um político profissional”, declarou. “É pura conversa e me sinto mal pelas pessoas que se envolveram com ele”, acrescentou.

O que esperar

Com base nos dois julgamentos anteriores de impeachment de presidentes americanos, em 1868 (Andrew Johnson) e 1999 (Bill Clinton), acredita-se que o processo transcorrerá da seguinte maneira:

» Acusações, intimação e resposta

Os artigos oficiais, ou seja, as acusações do processo de impeachment contra Trump, foram apresentados de maneira oficial na quinta-feira passada. Uma intimação formal foi enviada na quinta à noite para a Casa Branca. A Presidência respondeu no sábado. No fim de semana, as duas partes apresentaram ao Senado resumos do julgamento.

» Regras

Ontem, o Senado iniciou o julgamento do impeachment, presidido pelo presidente da Suprema Corte de Justiça, John Roberts. A primeira ordem do dia consistiu em estabelecer as regras: por quanto tempo serão ouvidos os argumentos dos promotores da Câmara de Representantes, assim como da defesa; o tempo destinado às perguntas — a cargo dos senadores, mas que serão lidas por Roberts; e se chamarão testemunhas, ou buscarão outras provas.

» As audiências

O processo de Bill Clinton (foto) durou cinco semanas e ele não compareceu. Tampouco se espera que Trump o faça. Na sexta-feira, uma equipe de nove advogados foi nomeada para sua defesa. No caso de Bill Clinton, o processo foi aberto com a defesa negando, formalmente, ponto por ponto, os artigos da acusação. Depois, foi a vez dos procuradores da Câmara. Cada lado teve três dias para apresentar argumentos. Depois, os senadores fizeram perguntas, por meio do presidente da Suprema Corte. Foram mais de 150 no total. A Casa Branca disse esperar que o julgamento termine em duas semanas.

» Testemunhas

No julgamento de Clinton, 17 dias depois de estabelecidas as regras, o Senado debateu dois assuntos a portas fechadas: um, para arquivar as acusações, e outro, para convocar testemunhas. Cada tema poderia ser decidido por um voto de maioria simples. Ambos os temas poderão surgir no mesmo momento no julgamento de Trump, que pediu ao Senado que arquive as acusações. Além disso, os procuradores da Câmara de Representantes querem convocar testemunhas e documentos. Se os republicanos permanecerem unidos, conseguirão arquivar o caso, se desejarem. Também podem rejeitar a questão das testemunhas e solicitar imediatamente uma votação final sobre as acusações contra Trump.

» Sentença

Depois que o assunto das testemunhas for esclarecido, o caso vai a julgamento. É necessária uma supermaioria de dois terços para condenar o presidente pelas acusações e destituí-lo do cargo. O apoio da maioria dos republicanos a Trump praticamente assegura que ele será absolvido.