Título: O cinema antes e depois de Cavalcanti
Autor: Rodrigo Fonseca
Fonte: Jornal do Brasil, 18/03/2005, Caderno B, p. 1

Na Vera Cruz, Cavalcanti supervisionou sua primeira produção, Caiçara, de Adolfo Celi, os documentários Painel e Santuário, de Lima Barreto, Terra é sempre terra, de Tom Payne, e Ângela, cujas atribuladas filmagens serviram para marcar sua ruptura com a empresa, que acabou tropeçando em seus próprios dogmas.

- A Vera Cruz só acabou porque não ouviram Cavalcanti - diz Cacá Diegues, que aponta como uma das maiores realizações do diretor o projeto do Instituto Nacional do Cinema.

Depois de ter saído da Vera Cruz e dirigido Simão, o caolho para a produtora paulista Maristela e O canto do mar e Mulher de verdade para a carioca Kino Filmes, Cavalcanti encaminhou a Getúlio Vargas (em seu segundo mandato) suas propostas para o estabelecimento do INC, nas quais segundo ele, ''todos meteram a mão, arranharam e modificaram''.

- Com o INC, Cavalcanti trouxe para o Brasil o pensamento moderno europeu de que o Estado deveria participar da economia do cinema. Claro que suas idéias eram próprias dos anos 50, mas foram fundamentais para despertar a importância dessa participação na cultura - diz Cacá.

Abalado pelos problemas da Vera Cruz e da malsucedida trajetória do INC, Cavalcanti acabou por deixar o país em meados dos anos 50. Voltando para a Europa, filmou, entre outros, O senhor Puntilla e seu criado Matti, de 1955, que o aproximou de seu autor, Bertolt Brecht. Para Brecht, Cavalcanti foi o único cineasta que não o desapontou ao transpor uma peça sua dos palcos para o écran.

- Sua obra pregressa já deixava para o espectador uma margem crítica, um distanciamento, o que era a essência do teatro de Brecht - explica Orlando Senna.

Talvez por influência de sua imersão no documentário, Cavalcanti passou a deixar um traço de realismo cada vez mais evidente em seus filmes. Diretor do Centro Técnico do Audiovisual (CTAv), o cineasta Sérgio Sanz, autor do pujante documentário Soldado de Deus (2004), o enxerga como um cineasta de transição na linhagem brasileira da época.

- Cavalcanti representou a transição do cinema feito antes e depois da 2ª Guerra. Até a guerra, na ficção, tudo era cenário. Depois dela, Cavalcanti torna-se um daqueles que buscam sair do estúdio retratando as comunidades como elas são e não como os filmes gostariam que elas fossem - explica.

Cavalcanti morreu em 1982, sem realizar o sonho de filmar O dr. Judeu, baseado na vida de Antonio José da Silva, uma vítima da Inquisição - projeto encampado e finalizado com muita luta pelo cineasta Jom Tob Azulay, grande colaborador de Alberto ao fim da vida. Mas ainda hoje a pluralidade de sua obra desafia os estudiosos.

Pelo menos um consenso existe: sua produção documental feita na Inglaterra é de inestimável valor. Sílvio Tendler, mestre neste filão graças a longas consagrados como Anos JK (1980), aponta o média Night mail (1936), feito para esclarecer os carteiros ingleses sobre o tráfego de correspondências entre Londres e Escócia, como um marco.

- Numa época em que ainda não havia o cisma declarado entre cinema documentário e cinema de ficção, Cavalcanti realizou uma obra importante como Night mail, que é um filme de reconstituição. Não arrisco dizer que ele é fundamental para a história de seu gênero, pois sou arredio nessa coisa de eleger algo como único. Mas, nesse horizonte, Cavalcanti foi fundamental.

No entanto, por mais aclamada que seja sua incursão documental, esta parcela de sua biografia ainda é uma lacuna para muitos brasileiros. É o que enfatiza Sérgio Sanz:

- Muita gente, por ignorância, ainda pensa que o marco do documentário é o cinema de Jean Rouch (diretor francês, autor de Moi, um noir, de 1957). Isso acontece porque as pessoas desconhecem a obra de Cavalcanti.