Título: Alberto Cavalcanti
Autor: Rodrigo Fonseca
Fonte: Jornal do Brasil, 18/03/2005, Caderno B, p. 1

Retrospectiva no MAM reavalia obra do cineasta brasileiro que é verbete em enciclopédias internacionais

Anos antes do rodopio do cangaceiro Corisco em Deus e o diabo na terra do sol atrair os olhares estrangeiros para o que se fazia no cinema brasileiro, um carioca nascido no fim do século 19 já havia participado de pelo menos duas revoluções no audiovisual para além das fronteiras do Atlântico. Não há como entender o movimento avant garde que sacudiu a França dos anos 20, agregando mestres como Jean Renoir e Marcel l'Herbier, sem a participação do cenógrafo, produtor, roteirista, figurinista, montador e, acima de tudo, cineasta Alberto Cavalcanti (1897-1982). O mesmo se pode dizer da fornada de documentários ingleses que, entre as décadas de 30 e 40, com a ajuda dele, evitou que a cartilha do gênero se reduzisse a fórmulas. Pela agigantada seleção de filmes, quase todos inéditos em circuito, que compõe a retrospectiva Alberto Cavalcanti que começa hoje no Museu de Arte Moderna do Rio e segue até 3 de abril, sempre de sexta a domingo, com entrada da franca, é possível entender por que o verbete com seu nome nas enciclopédias internacionais é sempre tão inflado - ainda que para o público local, sua obra ainda seja pouco conhecida.

- Alberto Cavalcanti pode ter caído no esquecimento do público. Mas, para o meio artístico, para quem faz e pensa cinema, ele é referencial. A importância da mostra é ter a nata do que ele fez - elogia Orlando Senna, secretário do Audiovisual do Ministério da Cultura, que ressalta a diversidade como principal virtude da filmografia de Cavalcanti, que foi da tragédia à comédia, do terror ao drama social, passando pelo documental.

Arquiteto formado em Genebra, Cavalcanti entrou para o universo da tela grande como ajudante de cenógrafo em Paris, em 1922, época em que uma corrente impressionista da vanguarda francesa tentava demarcar a singularidade do cinema em relação às artes cênicas e ao folhetim. Seus primeiros passos podem ser compreendidos pela retrospectiva. Nela estão, ao todo, 27 produções, entre curtas, médias e longas que dirigiu entre 1926 (Rien que lês heures, considerado seu début no ofício) e 1977 (Um homem e o cinema) selecionadas por Wanda Ribeiro, curadora da mostra.

- Sintetizar sua obra não é tarefa simples devido a seu ecletismo no bojo da produção cinematográfica e, acima e tudo, pelos diversos países em que atuou - explica Wanda.

Além da mostra, uma exposição de fotos, objetos de cena e documentos fica em cartaz até o próximo dia 27 no Espaço Sesc, em Copacabana, visando encurtar a distância entre os espectadores nativos e o legado daquele que nos anos 60 chegou a ser descrito pela imprensa como ''o primeiro brasileiro a entrar para a história do cinema mundial''. Não é à toa que o evento, organizado e montado por Jaime Figueiredo, foi batizado de Alberto Cavalcanti - Um brasileiro cineasta do mundo. Pelo foyer e pelas galerias do Sesc, painéis em preto e branco registram pequenos flagrantes de Cavalcanti em ação. Foram reproduzidos também sets nos moldes daqueles onde rodou longas consagrados fora do país. Entre eles Dead of night (1945), longa inglês em seis episódios, dos quais dois foram assinados por ele: The Christmas story e The ventroloquist's dummy. Até o encerramento da mostra, um catálogo sobre a relevância estética do cineasta será lançado - no mês passado foi já lançado o livro Alberto Cavalcanti - O cineasta do mundo, de Sérgio Caldieri.

Mais do que encher os olhos de qualquer cinéfilo, todos esses projetos deixam para as platéias uma pergunta: por que Cavalcanti ainda é uma esfinge entre seus conterrâneos, apesar da consagração global? Em 1972, numa polêmica entrevista concedida à revista Veja, o próprio diretor, amargando certo descaso local, arriscou uma resposta, atribuindo a culpa aos exibidores: ''Meus grandes filmes nunca foram exibidos aqui. Meu filme baseado em Charles Dickens, The life and adventures of Nicholas Nickleby, foi condenado pelo dono de uma enorme cadeia de cinemas. Acharam que estava acima da mentalidade do brasileiro. Um insulto ao povo e a mim achar que aqui ninguém entenderia Dickens''.

Para o diretor, os responsáveis pelo circuitos de exibição nunca flertaram com a sofisticação artística: ''Esse sempre foi o comportamento dos exibidores brasileiros, que preferem dar ao público coisas que se divirta em vez de oferecer coisas que melhorem sua cultura. É a ganância da bilheteria. Safadões...'', protestou à época o cineasta que escreveu um livro essencial para exorcizar os diabos da ''artindústria'' cinematográfica: Filme e realidade, de 1952. Aclamado pelos decanos da crítica como Ely Azeredo, que o elegeu ''o mais importante livro brasileiro sobre cinema'', o texto fez a cabeça da molecada que criou o chamado Cinema Novo nos anos 60. Um de seus expoentes, Cacá Diegues lembra que Cavalcanti não pôde acompanhar de perto a gênese do cinemanovismo:

- Até o Cinema Novo acontecer, Cavalcanti foi o único cineasta brasileiro de repercussão internacional. Nós o admiramos, embora ele não tivesse contato conosco. Como saiu magoado do Brasil, não viu o movimento nascer. Mas nos deixou duas obras-primas: Simão, o caolho, de 1952, e O canto do mar, de 1953.

A mágoa a que Cacá Diegues se refere diz respeito a uma das mais importantes contribuições de Cavalcanti à produção nacional: a consolidação da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, que, com seus grandes estúdios instaurou no país um modelo de produção quase hollywoodiano, segundo alguns teóricos, de tradição conservadora. Com todo o cabedal que trouxe de sua incursão européia, Cavalcanti assumiu sua direção artística em 1950 como um desafio. ''Minha intenção, ao coordenar os trabalhos de uma grande empresa cinematográfica nacional, foi estabelecer meios de se aprender cinema no Brasil'', afirmou em 1968 à revista O Cruzeiro.