O Globo, n. 31545, 19/12/2019. País, p. 4

Rachadinha de milhões
Miguel Caballero
Camila Zarur
Bernardo Mello
Juliana dal Piva
Juliana Castro
Thiago Prado


No pedido à Justiça para fazer as 24 ações de busca e apreensão em endereços ligados ao senador Flávio Bolsonaro (sem partido-RJ) e a ex-assessores seus na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), feitas na manhã de ontem, o Ministério Público do Rio (MP-RJ) elaborou o mais completo resumo das investigações sobre a prática de “rachadinha” no gabinete do então deputado estadual entre os anos de 2007 e 2018.

Os promotores afirmam que Flávio nomeava assessores orientados a devolver parte de seus salários para o grupo; que o ex-policial militar Fabrício Queiroz fazia toda a operação de recolhimento da remuneração dos funcionários; e que a loja de chocolates de Flávio num shopping da Barra da Tijuca e negócios imobiliários do senador serviam para lavar o dinheiro.

Entre as provas apresentadas, os promotores identificaram 483 depósitos de pelo menos 13 ex-assessores na conta bancária de Queiroz por transferência, cheque ou dinheiro em espécie, num total de R$ 2 milhões; outro grupo de ex-assessores que sacavam quase que integralmente o salário recebido; e conversas em aplicativos de mensagem obtidas no celular de uma ex-assessora. Também aparecem como indícios que completam o esquema, segundo o MP, depósitos em dinheiro na conta da loja de chocolates de Flávio e a “grande

desproporção” de lucros obtidos entre o senador e seu sócio na loja, embora o contrato previsse 50% de cotas para cada um. O advogado do filho do presidente Jair Bolsonaro nega as acusações (leia na página 8).

Após a operação, Flávio foi ao Palácio da Alvorada à tarde para se reunir com o pai. O encontro foi fora da agenda oficial. Flávio cruzou o portão do Alvorada com o carro oficial Senado por volta das 17h30m. O deputado Eduardo Bolsonaro e o advogado de Flávio, Frederick Wassef, também foram ao Alvorada.

Ao deferir os pedidos do MP, o juiz Flávio Itabaiana da Costa, da 27ª Vara Criminal da Comarca do Rio, afirma que “há indícios de que houve a formação de uma organização com alto grau de permanência e estabilidade, composta por dezenas de assessores da Alerj, nomeados por Flávio Bolsonaro, para a prática de crimes de peculato e lavagem de dinheiro”. Além da busca de documentos e aparelhos eletrônicos, o juiz autorizou também a quebra de sigilo bancário e fiscal de vários dos envolvidos.

Na conta de Queiroz

A investigação do MP-RJ teve início em julho do ano passado, depois que o Coaf enviou relatório sobre a movimentação atípica nas contas de Queiroz, e esteve interrompida entre julho e novembro deste ano, quando o Supremo Tribunal Federal( STF) paralisou os casos iniciados a partir de dados do Coaf. Ao apresentar os argumentos à Justiça, os promotores dividiram a apuração em duas etapas: os assessores e as provas de que eles devolviam parte de seus salários, via Fabrício Queiroz; e como Flávio Bolsonaro supostamente lavava o dinheiro retornado.

São 23 os ex-assessores citados no pedido de buscas assinado pelo Grupo de Atuação Especializada no Combate à Corrupção (Gaecc) do MPRJ. Eles são divididos em dois grupos. O primeiro, compost opor 13 ex-funcionários, é o núcleo ligado a Queiroz, formado por familiares (como sua filha e sua mulher), além de vizinhos e amigos indicados por ele para o gabinete. Esses ex-assessores depositaram ao longo de 11 anos R$ 2,06 milhões na conta bancária de Queiroz (69% do valor em dinheiro vivo ). Duas ex funcionárias desse grupo, Flavia Thompson Silvae Graziella

Robles Faria chegaram a sacar 99,21% e 99,90% do salário recebido enquanto estiveram na Alerj, outro indicativo para o MP de que devolviam parte dos vencimentos.

O segundo grupo é form ad opor dez ex-assessores moradores de Resen de, acidade onde os Bolsonaros viveram, no Sul fluminense. Nove deles têm parentesco com Ana Cristina Siqueira Valle, ex mulher e mãe do filho mais novo de Bolsonaro. Dos dez ex-funcionários do núcleo de Resende, seis sacaram em espécie mais de 90% dos salários recebidos, e outros três acima de 70%. O MP também dá indícios de que alguns desses funcionários não davam expediente no gabinete de Flávio. Para isso, cita reportagem do GLOBO, de junho deste ano, que mostra que um desses funcionários, Francisco Siqueira Diniz, cursava faculdade em tempo integral em Barra Mansa e jamais teve crachá da Alerj. 

Disparidade de lucro

A segunda parte do pedido de medidas cautelares ao juiz se dedica amostrar como seria feita a lavagem do dinheiro devolvido pelos funcionários. Os promotores do Gaecc afirmam que Flávio usou dois artifícios: a contabilidade da sua empresa Bolsotini Chocolates e Café LTDA e negócios imobiliários.

Flávio declarou em sua prestação de contas à Justiça Eleitoral, em 2018, ser dono de 50% da loja de chocolates, uma franquia da Kopenhagen no Shopping Via Parque, na Barra. A outra metade pertence a Alexandre Santini. O MP mostrou que, entre 2015 a 2018, Flávio aferiu cerca de R$ 978 mil como lucros da empresa, quase o dobro dos R$ 506 mil retirados por Santini.

O documento afirma ainda que os créditos em contas bancárias da Bolsotini entre 2015 e 2018, no valor de R$ 6,5 milhões, diferem em cerca de 25% do faturamento da empresa auditado pela administração do Shopping Via Parque (R$ 4,8 milhões). O MP também aponta que cerca de 45% dos recursos que ingressaram em contas da Bolsotini no seu primeiro ano de atividade vieram através de dinheiro em espécie.

Outro artifício usado para escondera origem do dinheiro seria a negociação de dois apartamentos em Copacabana. Segundo o MP, o intermediário americano Glenn Howard Dillard revendeu os dois imóveis para Flávio e sua mulher “com inexplicável deságio de cerca de 30%” em relação ao seu valor de mercado à época (novembro de 2012).

Mensagens de ex-assessora expõem esquema na Alerj

Os diálogos que ajudaram a embasar a operação de ontem estavam no celular de Danielle Mendonça, apreendido durante a operação Os Intocáveis, que investigou a atuação de milicianos na Zona Oeste do Rio. Além de ex-assessora do gabinete de Flávio Bolsonaro, Danielle é ex-mulher de Adriano Nóbrega, acusado de pertencer ao grupo de extermínio Escritório do Crime, e foragido desde o ano passado. Numa das mensagens, Fabrício Queiroz envia para Danielle o contracheque dela, para que fizesse seu imposto de renda. É um indício, segundo o MP, de que ela sequer comparecia ao gabinete.

Em outra, ela diz a uma amiga que há muito tempo vinha “incomodada com a origem desse dinheiro”. A conversa aconteceu em janeiro deste ano. No mesmo mês, Danielle conversou por mensagem com outra amiga , que confirmou a ilicitude dos pagamentos que recebia. Identificada apenas como “Paty”, a amiga da mulher de Adriano lembra a Danielle que foi o marido que havia conseguido uma nomeação como funcionária fantasma na Alerj e, por isso, ela poderia “ter se enrolado” com a Justiça.

Exoneração

As mensagens de Danielle mostraram ainda conversas entre a ex-assessora e Queiroz falando sobre a intenção de continuar com o esquema ilícito em 2019. No entanto, com a publicação da reportagem sobre as movimentações atípicas detectadas pelo Coaf, Danielle é exonerada, em janeiro. Na conversa, Queiroz adverte a ex-assessora:

“Tá havendo problemas. Cuidado com que vai falar no celular”. O último contato de Queiroz com Danielle por WhatsApp foi feito em 16 de janeiro. De acordo com o MP, apesar de algumas mensagens terem sido apagadas, é possível entender que Queiroz pergunta se a ex-assessora foi chamada a depor pelo Ministério Público e a orienta a faltar o depoimento.

“Chamaram sim”, escreve Daniella, que logo em seguida responde a outra pergunta apagada por Queiroz: “Um policial veio aqui na quinta-feira passada. Amanhã será o dia do depoimento”.

Queiroz, então, manda mais algumas mensagens que foram apagadas. A ex assessora, por fim, responde, dando a entender que falou com advogados:

“Eu já fui orientada. Ontem eu fui encontrar os amigos”.