O Estado de S. Paulo, n. 46902, 17/03/2022. Internacional, p. A11
Na guerra da Ucrânia, espere o inesperado
Thomas L. Friedman
Toda guerra traz consigo surpresas, mas o elemento mais marcante a respeito da guerra de Vladimir Putin contra a Ucrânia – e indiretamente contra todo o Ocidente democrático – é a quantidade de surpresas ruins para Putin, até agora, e a quantidade de surpresas felizes para a Ucrânia e seus aliados ao redor do mundo.
Por quê? Bem, estou bastante certo de que quando Putin estava planejando esta guerra, ele achou que, em três semanas, proferiria um discurso de vitória no Parlamento da Ucrânia dando boas-vindas ao país em seu retorno ao seio da Mãe Rússia.
Putin também achou que o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, estaria exilado em algum Airbnb polonês, que os soldados russos ainda estariam retirando de seus tanques as flores com que foram recebidos pelos ucranianos e ele mesmo estaria celebrando com o presidente chinês, Xi Jinping, por ter mostrado à Otan e ao Sleepy Joe (Biden) quem estabeleceria as regras do sistema internacional daí adiante.
Liberdade. Em vez disso, os ucranianos deram aos russos um tutorial sobre como combater e morrer por liberdade e autodeterminação. Putin parece estar trancado dentro de sua câmara de isolamento antigermes, preocupado com a possibilidade de qualquer oficial militar russo que se aproxime poder lhe apontar uma arma.
Zelenski discursou virtualmente ao Congresso dos EUA. A globalização, em vez de acabar, testemunha indivíduos do mundo inteiro usando redes globais para monitorar e influenciar os rumos da guerra de maneiras inesperadas. Com alguns cliques, pessoas mandam dinheiro para dar apoio aos ucranianos e teclando um pouquinho dizem a todos no mundo, do Mcdonald’s ao Goldman Sachs, que devem se retirar da Rússia até que os soldados russos se retirem da Ucrânia.
Outra surpresa que poucos anteciparam – especialmente China e Rússia. A China fiouse nas próprias vacinas para combater a covid-19, juntamente com uma política de tolerância zero e quarentenas imediatas para evitar a disseminação do vírus. Mas as vacinas chinesas parecem menos eficazes do que as outras. E, em razão da estratégia de quarentenas ter deixado a China menos imune, o vírus agora está se espalhando como rastilho por lá.
Como noticiou o Times na terça-feira: “Dezenas de milhões de habitantes de províncias e cidades chinesas, incluindo Pequim, Xangai e Shenzhen, estão sob lockdown em meio a um surto da variante Ômicron do coronavírus. Viagens entre as cidades foram banidas, linhas de produção foram paralisadas e shopping centers foram fechados”.
E o que isso faz? Mata a demanda por petróleo e baixa o preço do insumo – que, depois de se aproximar dos US$ 130 o barril, por causa da guerra na Ucrânia, caiu abaixo dos US$ 100 na terça-feira. E qual país precisa desesperadamente de preços altos de petróleo porque tem pouquíssimo mais o que vender ao mundo para financiar sua guerra? A Rússia de Putin.
Bondade. Portanto, a estratégia anticovid da China está comprometendo a estratégia petroleira de Putin – o que, provavelmente, prejudica o russo tanto quanto qualquer medida que os EUA estejam adotando. Ainda somos muito mais conectados do que somos capazes de perceber.
Agora que passamos da fase inicial desta guerra, surpresas não param de aparecer. Para mim, as três maiores são os atos extraordinários de crueldade, coragem e bondade que esta guerra tem revelado e inspirado.
Nunca duvidei de que, uma vez que Putin lançasse esta guerra, ele faria de tudo para garantir ser capaz de se autoproclamar “vencedor”. Mas é impressionante assistir quão rapidamente ele se enrolou. Num intervalo de três semanas, Putin começou dizendo que tinha entrado na Ucrânia para libertar o país de sua liderança “nazista” e trazer Kiev de volta para seu lar natural, a Rússia, e passou a destruir as cidades ucranianas e mirar civis indiscriminadamente em seus bombardeiros para derrubar a resistência contra sua aspiração.
Como um líder começa afirmando que a Ucrânia e seu povo são partes integrais da alma e da tessitura da Rússia – com línguas, cultura e religião compartilhadas – e, quando repelido, passa imediatamente a se dedicar a esmagar o lugar até as cinzas? E sem nenhuma explicação aos ucranianos, ao mundo ou ao seu povo.
Surpresas. É o tipo de loucura perversa que vemos num amante desprezado ou num “crime de honra”. E é chocante e aterrador vê-la manifestada pelo líder de uma superpotência que possui cerca de 6 mil ogivas nucleares. Há algo a respeito desse sujeito que prenuncia mais surpresas sinistras.
Sempre me impressiono com a coragem que pessoas aparentemente normais manifestam na guerra – neste caso, não apenas dos ucranianos, mas também dos russos que se recusam a comprar as mentiras de Putin, cientes de que ele está transformando seu país numa nação pária.
Então, me maravilho com a coragem inspiradora demonstrada na noite da segunda-feira por Marina Ovsiannikova, funcionária da emissora de TV russa Canal 1, que invadiu uma transmissão ao vivo do noticiário mais visto no país gritando: “Pare a guerra!”, segurando um cartaz ao lado da apresentadora que dizia “Estão mentido para vocês”.
Ela foi detida, interrogada e, por enquanto, libertada – provavelmente porque Putin temeu transformá-la em mártir. Marina – lembre-se deste nome. Ela ousou dizer ao czar que ele está nu. Que coragem.
Ajuda. E, finalmente, guerras também revelam atos extraordinários de bondade. Nesta guerra, alguns deles ocorreram espontaneamente e influenciaram de maneiras que ninguém esperava uma plataforma – o site Airbnb.
Executivos do Airbnb afirmam que, no início de março, simplesmente perceberam que os membros de sua comunidade estavam usando a plataforma espontaneamente de uma maneira nova: transformando sua tecnologia para reservas num sistema de ajuda internacional feito em casa, de pessoa a pessoa.
Nas últimas duas semanas, de acordo com a empresa, pessoas de 165 países reservaram mais de 430 mil noites de hospedagem em lares ucranianos listados no Airbnb sem nenhuma intenção de se hospedar de verdade – simplesmente para doar dinheiro aos anfitriões ucranianos, em sua maioria desconhecidos.
O Airbnb renunciou temporariamente às taxas que cobra de hóspedes e anfitriões na Ucrânia. Então, todos os US$ 17 milhões levantados por essas reservas estão indo para os ucranianos. Hóspedes de EUA, Reino Unido e Canadá são os maiores doadores. Austrália, Alemanha e outros países europeus completam o top 10.
Além disso, até o domingo, cerca de 36 mil pessoas de 160 países se inscreveram na afiliada sem fins lucrativos da plataforma, Airbnb.org, para receber em suas casas refugiados em fuga da Ucrânia. Seria impossível para a Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) causar tamanho impacto tão rapidamente.
Muitos dos anfitriões ucranianos que receberam essas doações na forma de reservas escreveram aos seus doadores para agradecer, forjando novas amizades e ajudando os estrangeiros a entender o impacto desta guerra com uma profundidade muito maior.
Não há nada melhor que se comunicar pessoalmente com ucranianos escondidos nos porões de suas casas explicando que você está feliz em poder alugar esse porão para jamais usá-lo. Isso cria uma comunidade de bondade que sozinha é incapaz de derrotar os tanques de Putin, mas que pode ajudar a dar apoio àqueles determinados em resistir, recordando-os de que eles não estão sozinhos – Putin é que está.
Não acho nada disso surpreendente. Sempre argumentei que globalização não é apenas comércio. É a capacidade de países, empresas e agora cada vez mais indivíduos se conectarem para agir globalmente. O circuito da humanidade faz os seres humanos quererem se conectar, e a conexão do mundo de hoje está facilitando e barateando que eles façam isso diariamente.
Por tudo isso, o que torna as surpresas felizes desta guerra tão surpreendentes é que elas apanharam de surpresa as pessoas responsáveis por elas. Mas devo avisar: outras surpresas virão – e nem todas serão felizes. / Tradução de Guilherme Russo