Título: Bolívia - a revolta andina
Autor: Juan Gabriel Tokatlian*
Fonte: Jornal do Brasil, 20/03/2005, Internacional / Além do fato, p. A15

A conflituosa situação boliviana revela uma profunda crise de governabilidade que pode alterar gravemente a paz na região. O episódio da renúncia ¿ revogada duas vezes ¿ do presidente Carlos Mesa, que culminou com sua previsível rejeição, expressa a dimensão de que se inscreve no quadro mais amplo de uma profunda e cada vez mais generalizada crise na América Latina (AL). O começo do século encontrou a região enterrada em suas atávicas e não resolvidas dificuldades. A AL enfrentou, nos anos 70, uma década perdida em termos políticos: a extensão de governos autoritários ¿ salvo exceções de democracia limitada ¿ marcados por abuso de poder, desrespeito à lei, violação de direitos humanos e desvalorização da ética pública significaram um enfraquecimento institucional. Já a de 80 foi perdida na economia: os resquícios foram o baixo crescimento, o alto endividamento, muita volatilidade, aumento do emprego informal, baixa capacidade tecnológica e queda da qualidade de vida. Durante os anos 90, a região perdeu no âmbito social: a desigualdade se aprofundou, a polarização entre as classes e etnias aumentou, os índices de miséria e indigência se mantiveram altos, a violência urbana cresceu, o desemprego se multiplicou, a educação ficou descuidada e a a saúde se deteriorou.

É ilusão crer que a soma de tantos anos de mal-estar iria se conter indefinidamente ou se resolver pela força. Assim, o exemplo da Bolívia, que sofreu com extraordinária intensidade as características mais negativas desses 30 anos perdidos, é emblemático.

Partindo de um modelo ideal a partir de um continuum entre ¿bom¿ e ¿mau¿ governo, o caso fica na fronteira da ingovernabilidade. Esta, segundo Philippe Schmitter, se identifica por quatro indicadores.

O primeiro é a indisciplina: a cidadania (a despeito de origem social, política e étnica) recorre mais a métodos de força ¿- violentos, ilícitos ou irregulares ¿ para influenciar as políticas públicas. No segundo emerge a instabilidade produzida quando as elites dirigentes perdem a capacidade de liderança ou de preservação de coalizões efetivas. No terceiro, irrompe a ineficiência, evidenciada quando a administração não estabelece metas nem assegura seu respeito. No último, se instala a ilegalidade, entendida como a ação na qual atores com mais poder tentam driblar limitacões e controles jurídicos em busca de vantagens próprias e extralegais.

Ao avaliar a dinâmica socio-política na Bolívia, se vê a crise de governabilidade. Esta se agrava por dois fenômenos. De um lado sobressai o declínio do Estado falido, definido pela extensa ilegitimidade institucional e pela incapacidade de proteger os cidadãos. É, sem dúvida, um caso agudo de debilidade estatal que pode acabar em uma situação anárquica, isto é, ausência de um governo central.

Por outro lado, a globalização ¿ em algumas de suas manifestações menos benéficas ¿ aumenta a ingovernabilidade, mais internacional em fundamentos e efeitos. Um tipo de globalização defeituosa que corrói ainda mais a soberania estatal, debilita a base produtiva, reforça a fragmentação social e limita a autonomia diplomática. De fato, a maioria dos assuntos que determinam a realidade boliviana nesta conjuntura, isto é, os níveis de estabilidade, a reafirmacão das identidades, a gestão dos recursos energéticos, a proliferação do tráfico de drogas, as questões de fronteira, a tentação secessionista e a fragilidade geopolítica, entre outras, está atravessada por poderosas forças e fatores externos. Tudo isso torna a crise internacional.

Em breve, pode se ver o cenário que Thomas Hobbes descreveu em Behemoth , mais do que traçou no Leviatã . A combinação de dissolução de poder, erros do Estado, equívocos coletivos e corrosão do corpo político parecem conduzir a um conflito difícil de conter. E como bem recorda Hobbes, a reconstrução estatal não passa só por elevar a capacidade coercitiva e dissuasiva do Estado. O sustento político não se concentra ou se limita ao exercício da coerção. Nem o uso legítimo da força é condição suficiente para transitar da desordem à ordem. É indispensável ver que ¿o poder do poderoso não se funda senão na opinião e na crença do povo¿. Tal obediência se estabelece na medida em que existam ¿regras infalíveis¿ e a ¿ciência da igualdade e da Justiça¿.

O texto foi originalmente publicado no jornal La Nación

*Diretor da cátedra de Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade de San Andrés, Argentina Bolívia