Título: Dr. Jekyll e Mr. Chávez
Autor: Marcelo Ambrosio
Fonte: Jornal do Brasil, 20/03/2005, Internacional / Além do fato, p. A15

A relação entre o governo americano de Bush e o venezuelano de Hugo Chávez nunca esteve tão ruim. O entrechoque da postura hegemônica do primeiro com a verborragia revolucionária do segundo ouriçou o staff diplomático vizinho, inclusive do Brasil. O objetivo é o de abrandar a fervura num ambiente político sensível e volátil. Mas o problema com que os interlocutores se deparam é saber com qual dos Chávez se vai realmente negociar. Se o democrata alinhado com a esquerda modernizada de Brasil e Uruguai (como gosta de ser visto aqui), ou um stalinista ultrapassado e folclórico (como é visto em Washington). A segunda hipótese a cada dia se consolida mais e mais. O presidente calca sua mensagem no conceito de ¿democracia revolucionária¿ destilado de frustradas experiências do socialismo real que sobrevivem com dificuldade no mundo moderno. Segundo o cientista político venezuelano Manuel Felipe Sierra, trata-se de um modelo clássico, movido pela dualidade inimigo interno versus inimigo externo, no qual se privilegiam as conquistas sociais sobre os valores conceituais da liberdade, cuja síntese é o regime de Fidel Castro. Em teoria, a definição realista desse processo tem o prazo de validade vencido há muitos anos, desde o fim da Guerra Fria. Por isso, a exportação do projeto não encontra sustentação além das fronteiras venezuelanas, onde o mundo se move para o lado oposto e a política internacional se faz sob a ótica neoliberal, na qual múltiplos atores exercem papéis importantes na dinâmica entre Estados e a obtenção do poder não é o objetivo único. Na América do Sul, a consolidação da nova esquerda se deu via partidos e lideranças alinhadas com respostas às injustiças sociais e econômicas da região, e não (como simplifica a linguagem chavista) como conseqüência de una ¿avassaladora onda revolucionária¿.

Tais contradições, no entanto, não impressionam Chávez, que apóia o Irã contra os EUA e espantou a Casa Branca ao manifestar intenção de redirecionar a venda do petróleo, a maior riqueza nacional, reduzindo a fatia destinada aos americanos ¿ 15% do consumo deles ¿ e repassando à China. Para Sierra, ¿É apenas um sonho alimentado por uma generosa e torrencial injeção de petrodólares¿.

Noutro sinal da aparente contradição entre a estratégia do libertador, na reação dos oprimidos à pressão econômica e política, e o grau de liberdade interna, a Venezuela é um país amordaçado. Como se retirada de um velho script, inclui um inchaço na Suprema Corte, que passou de 20 juízes para 32. Os magistrados são escolhidos pela Presidência sem que suas credenciais sejam avaliadas pelo congresso (também pró-Chávez). O novo presidente da Corte, na posse, avisou: ¿qualquer juiz que aja contra os princípios revolucionários será demitido e a sentença reformada¿.

Mas a pedra de toque foi a mudança no Código Penal que atinge o quarto fator do poder político: as ruas. Chávez já havia aprovado normas que amordaçam a imprensa. Domina o Legislativo e o Judiciário. Mas ainda precisava impedir que os panelazos que expuseram sua face Mr. Hide ao mundo continuassem. Agora o fez.

Diz o Artigo 297 do código: ¿qualquer indivíduo que usar falsa informação disseminada por jornais, revistas, rádio, TV, telefone, e-mail ou panfletos para tentar causar ou causar pânico entre o público, ou manter níveis de ansiedade, será punida com cinco anos de prisão¿. O Artigo 508 completa: ¿Qualquer um que usar de gritos, campainhas ou outros instrumentos, métodos barulhentos ou práticas que causem distúrbio em reuniões públicas ou ambientes de trabalho, será punido com prisão de um a dois meses e multa. Se a ofensa for contra o Executivo, juízes da Suprema Corte, membros da Assembléia Nacional ou dos estados, a punição é de três a quatro meses¿.

O pacote tem nome pomposo: ¿Novo Estágio, Nova Estratégia¿, conforme disse Chávez aos militares. Explicaria a passagem da consolidação interna para a confrontação externa e exportação da revolução. Para garantir que não haja retrocesso, o presidente criou Unidades de Batalha Interna, esquadrões encarregados do controle social da população, além de ordenar vigilância sobre a oposição, que reuniu 4 milhões de votos contra ele no referendo, para evitar que se reorganize.