Título: Não seremos felizes tão cedo
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Fonte: Jornal do Brasil, 20/03/2005, Sete dias, p. A20
A primeira metade do mandato de Lula, como não se cansam de informar os mandarins do PT, foi consumida no esforço para lidar com a ¿herança maldita¿ legada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. A política econômica pouco mudou, mas a favorável conjunção dos astros, sublinhada pela ausência de crises internacionais, tem provocado efeitos positivos na economia. Tais efeitos, por enquanto, permanecem confinados em números e estatísticas: um passeio pelas ruas e pelos campos do país exibe paisagens desoladoras, fruto de problemas sociais endêmicos. Mas Lula está feliz. ¿Muitos tentaram atravessar o Canal da Mancha, poucos conseguiram¿, declarou há dias. ¿Nós conseguimos. Estamos pisando em terra firme¿.
Nós e milhares de indivíduos que cruzam todos os dias a ponte rodoferroviária entre a Inglaterra e a França. É possível que Lula desconheça a existência da ponte. Ele ignora muitas coisas. Parece ignorar, por exemplo, que governar é escolher ¿ escolher com a rapidez possível e, de preferência, corretamente. O presidente pensa na reforma ministerial desde setembro. Só agora conseguiu concluí-la.
As escolhas anunciadas não estimulam a esperança de que, liberada da ¿herança maldita¿, a Era Lula enfim tratará de cumprir as promessas de campanha, e promover mudanças capazes de desenhar o Brasil vislumbrado na retórica eleitoral. As indicações não levaram em conta critérios vigentes em nações civilizadas, como competência e conhecimento da área. Prevaleceram os manuais da conveniência política e da barganha fisiológica. A reforma ministerial não foi feita para melhorar o país, mas para reeleger o presidente.
O senador Romero Jucá, figurão do governo FH, bandeou-se do PSDB para o PMDB e acabou premiado com a Previdência Social. Tem contas a ajustar com o Fisco, mas essas miudezas não impedem ninguém de instalar- se num gabinete desocupado pelo senador Amir Lando.
Indicado pelo onipresente Severino Cavalcanti, o deputado Ciro Nogueira, do PP piauiense, pousou no Ministério das Comunicações horas depois de ter contado a jornalistas que colava no tempo de estudante. E dirigia sem carteira de habilitação.
E daí?, dirá Severino, protetor confesso dos motoristas infratores e cachaceiros brigões de João Alfredo, terra natal do presidente da Câmara. A folha corrida do escolhido também registra a mania de nomear parentes. E quem faz isso?, dirá o padrinho de Ciro Nogueira.
Outra noviça no primeiro escalão, Roseana Sarney deixará o PFL para cuidar do Ministério das Cidades. É filha do ex-presidente José Sarney. Governou o Maranhão duas vezes. Certamente conhece centenas de cidades. É preciso mais?
¿Eu sou o técnico do time¿, vive proclamando Lula. Quem formula táticas é o Capitão José Dirceu. O chefe da Casa Civil também participa do Conselho dos Altíssimos Companheiros, que auxilia o técnico a tomar decisões complexas demais para um Lula só. De questões econômicas se encarregam o médico Antonio Palocci e o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles. O resto do time ajuda na marcação. De vez em quando, até consegue fazer um gol.
A contemplação do retrato do novo Ministério exibe um conjunto de quinta categoria, incapaz de traçar os caminhos que o Brasil deveria percorrer em direção à modernidade. (Não que as equipes de governos anteriores tenham impressionado pela qualidade, mas esta é de chorar). Ainda assim, é muito provável que Lula consiga reeleger-se, talvez com facilidade. Descolado do velho PT, mantém bons índices de popularidade. É simpático, cativante, sedutor. Os ricos têm acumulado lucros deslumbrantes no seu governo, os pobres crêem na ocorrência de mudanças. É difícil aceitar que esse filho do Nordeste já não se lembre do sofrimento de sua gente. Faltam candidatos à oposição. Ou talvez o destino apenas nos tenha condenado não ser felizes tão cedo.