Folha de S. Paulo, n.32.868, 30/03/2019. Poder. p. A8

Ordem para celebrar golpe é inédita em 20 anos e também incomoda militares
Rubens Valente 

 

A orientação dada pelo presidente Jair Bolsonaro para que quartéis celebram o golpe de março de 1964 por meio de uma ordem do dia escrita e distribuída pelo Ministério da Defesa é fato inédito nos últimos 20 anos, desde a criação da pasta, em junho de 1999.

A decisão contenta setores das Forças Armadas que pretendem oferecer uma narrativa própria sobre o golpe, descrito como uma revolução no contexto da Guerra Fria, mas também incomoda militares que querem evitar uma agenda que divide o país. 

“O Exército tem tanto a comemorar, a participação na Segunda Guerra, a presença na Amazônia, pautas que unem o país. O 31 de Março não, isso alimenta uma divisão falsa e que não interessa ao país, acho lamentável e também não interessa às Forças Armadas”, disse o ex-ministro da Defesa (2015-2016) Aldo Rebelo (SD-SP).

Para o ex-ministro, a decisão da Defesa de produzir uma ordem do dia unificada para todo país “já foi um gesto para atenuar a própria repercussão da celebração [que partiu do presidente]. Teve um certo efeito moderador porque seu conteúdo também valoriza a legalidade e a democracia”.

Oficiais não escondem o desconforto de ter que lidar com o assunto, embora defendam a possibilidade de apresentar a versão dos militares sobre 1964.

Em um simpósio para militares e jornalistas nesta quarta-feira (27), no Comando do Exército em Brasília, o chefe da comunicação social, general de divisão Richard Nunes, apontou a “polarização absurda da sociedade” que atinge diversos países, incluindo o Brasil, como um dos três desafios no planejamento estratégico da comunicação da Força para este ano —os outros são o sistema de aposentadoria militar, que eles chamam de proteção social, e reestruturação da carreira e a manutenção da credibilidade de instituição de Estado.

A polarização, segundo Nunes, “preocupa a instituição porque nós também somos objeto” dela, e ela se estendeu "ao 31 de Março".

“Isso para nós é complicado porque a gente é tragado para o centro desse debate novamente, quando muitas vezes o que a gente quer é trabalhar para frente, vamos pensar nos projetos estratégicos. Agora, uma narrativa para uma instituição que participa da história do Brasil desde seus primórdios, ela é fundamental. Imaginar que seria diferente é absurdamente ridículo”, disse o general.

A polarização, segundo o chefe da comunicação, está ligada também “ao clamor” suscitado pela data de 31 de março de 1964.

“Tratar do 31 de Março ainda é, no Brasil, algo muito pungente. E há tentativas de construção de narrativas. Nós assistimos a uma narrativa predominar durante várias décadas e essa narrativa passou a ser contestada. É só isso. Houve uma narrativa que predominou goela abaixo. Para nós sempre foi, a gente olhava: ‘Não é essa a nossa narrativa, peraí. Não é bem assim que a gente analisa essa história’.”

A comemoração estimulada por Bolsonaro joga um holofote sobre um tema indesejado para muitos dos oficiais da ativa, que durante anos desenvolveram o discurso de que os eventos de 1964 pertencem ao passado e, por isso, não devem ser revisitados.

Essa posição está na essência da política desenvolvida pelas Forças Armadas ao longo das últimas três décadas, que contou com o apoio de todos os presidentes civis desde 1985, a fim de impedir a punição dos oficiais que praticaram crimes contra os direitos humanos durante a ditadura.