O Globo, n. 31523, 27/11/2019. País, p. 6

A hora de prender
Isabella Macedo


Num acordo costurado pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), com o apoio do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), líderes partidários decidiram ontem dar prioridade à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Câmara sobre a prisão imediata de condenados em segunda instância, em detrimento do projeto de lei sobre o mesmo assunto em tramitação no Senado. Na prática, isso joga qualquer decisão sobre o tema no Congresso para 2020, já que o rito para a aprovação de uma PEC é mais demorado do que o de um projeto, mas significa também um avanço nas discussões sobre a mudança na lei.

Insatisfeito, o grupo de senadores que defende mudança legislativa para derrubar o entendimento do Supremo de que a prisão só pode ocorrer após esgotados todos os recursos insiste em dar continuidade à tramitação do projeto de lei no Senado. A presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa, senadora Simone Tebet (MDB-MS), anunciou ontem que fará audiência pública sobre o tema, com o ministro Sergio Moro (Justiça) e juristas, na semana que vem, independentemente da decisão dos líderes.

Em articulação desde a semana passada, o acordo foi selado ontem na casa de Alcolumbre, com a presença de Maia, deputados, senadores e Moro. O grupo derrotado deixou o encontro antes do fim, alegando que houve um “acordão”. Para o senador Alvaro Dias (Podemos-PR), a decisão é uma “estratégia de protelação”:

— Procedimento é no ritmo da tartaruga. Não vemos interesse em agilizar.

TRÂMITE

No início da semana passada, a previsão era a de que o projeto, com alterações no Código de Processo Penal (CPP), fosse votado na CCJ do Senado ainda esta semana. O texto, do senador Lasier Martins (Podemos-RS), é terminativo na CCJ. Ou seja, não precisaria passar pela análise do plenário. Caso fosse aprovado — por maioria simples —, seguiria direto para a Câmara.

Sob alegação de que é preciso haver entendimento entre as duas Casas para o assunto andar, o grupo de Alcolumbre defendeu que o Senado congele a análise desse projeto e aguarde o resultado da votação da PEC sobre o assunto na Casa.

Aprovada na CCJ da Câmara na semana passada, a proposta altera os artigos 102 e 105 da Constituição que tratam dos recursos extraordinários e especiais, respectivamente os que são apresentados ao STF e ao STJ. O texto sugerido faz com que decisões de cortes colegiadas já sejam consideradas como trânsito em julgado. Ou seja, se uma pessoa for condenada em segunda instância, já poderia começar a cumprir a pena.

Investir no texto da Câmara dá outro ritmo à análise do assunto no Congresso. Diferentemente de um projeto de lei, uma PEC passa pela análise de uma comissão especial, que tem 40 sessões para votá-la. Depois, segue para o plenário, onde depende do apoio de três quintos dos parlamentares (308 deputados e 49 senadores). A PEC sobre segunda instância foi aprovada pela CCJ na semana passada e ainda aguarda a instalação da comissão especial para avançar. A previsão é que o texto só chegue ao plenário da Câmara em março ou abril de 2020.

Assim, se aprovada, a PEC seguiria para o Senado no fim do primeiro semestre do ano que vem, quando o Congresso já estará em clima de eleições municipais. Tradicionalmente, o ritmo de votações cai nas duas Casas em anos eleitorais.

ESTRATÉGIAS

Esfriar o assunto interessa a Alcolumbre e Maia, que, desde a votação do Supremo, no início do mês, têm se mostrado reticentes quanto ao assunto. O primeiro chegou a dizer que não havia “nem perspectiva” de votar um projeto sobre o tema. Ambos declararam que é preciso ter clareza se alterar a legislação sobre o momento da execução da pena não fere uma cláusula pétrea da Constituição.

Na tentativa de minimizar a derrota, Simone Tebet e o grupo de senadores que defende a prisão imediata de condenados em segunda instância pediu que a Câmara dê uma garantia de que o assunto vai avançar. Uma das exigências é que a Casa apresente um calendário para a tramitação da PEC, começando pela indicação dos integrantes da comissão especial já na semana que vem. Segundo Tebet, se a Câmara descumprir o calendário que será apresentado, ela poderá pautar outros projetos sobre o tema que atualmente tramitam na CC J do Senado.

— O que eu posso adiantar é o seguinte: o calendário vai ser acordo (entre as duas Casas). Se houver acordo nesse calendário e uma única data não for cumprida, nada impede que os projetos que estejam na CCJ sejam imediatamente colocados em pauta — afirmou Tebet.

Depois do encontro em sua casa, Alcolumbre defendeu a decisão:

— É injustiça apontar para o Senado como uma Casa que não quer dar as respostas. Ao contrário, o Senado quer fazer o que é certo. E fazer o que é certo é fazer uma legislação, votar uma legislação que possa modernizar e pacificar de uma vez por todas essa questão, porque nós já tivemos quatro decisões do Supremo.

“Procedimento (de priorizar a PEC) é no ritmo da tartaruga. Não vemos interesse em agilizar” 

Alvaro Dias, senador descontente com o acordo

“É injustiça apontar para o Senado como uma Casa que não quer dar as respostas. É (preciso) fazer uma legislação que possa pacificar de vez essa questão”

Davi Alcolumbre, presidente do Senado

A MUDANÇA NA CONSTITUIÇÃO, PONTO A PONTO

O que propõe a PEC que vai tramitar na Câmara?

O objetivo é fazer uma emenda à Constituição para voltar a permitir a execução de pena após uma decisão judicial de segunda instância. O deputado Alex Manente (Cidadania-SP) propõe alterar os artigos 102 e 105 da Constituição, que tratam dos recursos especiais e extraordinários, aqueles apresentados ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ao Supremo Tribunal Federal (STF). Se eles forem extintos, conforme diz a PEC, o trânsito em julgado de uma condenação se daria após a decisão em segunda instância, e a pena poderia ser executada.

As cláusulas pétreas

A mudança nos artigos 102 e 105 é uma estratégia para não ser preciso alterar o artigo 5º da Constituição, que estabelece: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Esse artigo é considerado cláusula pétrea, e portanto não pode ser modificado pelo Congresso. Extinguindo-se os recursos às Cortes superiores, a execução de pena pode começar na segunda instância sem que o texto constitucional seja desrespeitado.

Próximos passos no Congresso

A PEC do deputado Alex Manente já foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara. O texto ainda precisará passar por uma comissão especial na Casa. Esse colegiado ainda não está funcionando porque os partidos ainda precisam indicar seus integrantes. Se aprovada por três quintos dos deputados (308 votos) em plenário, a proposta segue para o Senado, onde terá de ser aprovada pela CCJ e pelo plenário da Casa.

Projeto preterido

Atualmente, tramita na CCJ do Senado um projeto de lei, do senador Lasier Martins (Podemos-RS), que altera três pontos do Código Penal para permitir a prisão após condenação em segunda instância. É o preferido dos senadores que desejam a volta da execução antecipada de pena, como a presidente da CCJ, Simone Tebet (MDB-MS). Como é um projeto terminativo na CCJ, não precisaria passar pelo plenário do Senado. Se aprovado na comissão, seguiria direto para a Câmara. Porém, com o acordo selado pelos presidentes da Câmara e do Senado para priorizar a PEC do deputado Alex Manente, esse projeto de lei deve perder espaço. A presidente da CCJ, porém, disse que não pretende interromper a tramitação do projeto do senador Lasier Martins, e que já na semana que vem convocará uma audiência pública na CCJ do Senado.

A interpretação do STF

No dia 7, o Supremo voltou a decidir sobre o momento, numa ação penal, em que um réu pode ser preso. A Corte mudou a interpretação adotada em 2016, quando passou a permitir a prisão em segunda instância. Dessa vez, houve maioria (6 votos a 5) para a interpretação de que a Constituição exige o esgotamento de todos os recursos antes que o réu vá para a cadeia — mesma interpretação que valeu de 2009 a 2016.