O Globo, n. 31523, 27/11/2019. Economia, p. 22

As ideias politicas de Paulo Guedes
Míriam Leitão


O que assusta é o quanto o ministro da Economia desconhece sobre a relação entre economia e política, entre democracia e fatores de risco atualmente avaliados pelos fundos de investimento. Se houver um outro AI-5, ou que nome tenha uma violenta repressão policial militar às liberdades democráticas, os investidores fugirão do Brasil. A economia não é uma ilha que possa manter seu equilíbrio sobre escombros da civilização.

O governo Bolsonaro neste momento saiu das palavras autoritárias para as propostas autoritárias. O perigo mudou de patamar. A ideia de uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para ação na área rural mais a proposta de que dentro das GLOs haja o “excludente de ilicitude” formam uma mistura perigosa. E intencional, na opinião do deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ):

— Isso é um AI-5. Quando a GLO se generaliza e dentro dela está embutida o excludente de ilicitude temos um verdadeiro AI-5.

Em outro momento de sua desastrada e longa fala, Paulo Guedes disse que o presidente não está com medo do ex-presidente Lula. “Ele só pediu o excludente de ilicitude. Não está com medo nenhum, coloca um excludente de ilicitude. Vam’bora.”

É impossível ir embora, tocar adiante com essa leveza que o ministro sugere, porque a expressão “excludente de ilicitude” parece um termo técnico e anódino, mas significa licença para matar. No país em que as forças de segurança matam muito e cada vez mais, em que os militares das Forças Armadas respondem apenas à Justiça Militar e em um governo que jamais escondeu sua profunda admiração pelas ditaduras, esse instrumento não é um detalhe burocrático. Pode ser a porta do horror.

O ministro repetiu uma ideia que é recorrente em seu discurso, a de que se há crítica ao governo é porque não se aceitou o resultado da eleição. “Sejam responsáveis, pratiquem a democracia, ou democracia é só quando um lado ganha? Quando o outro lado ganha, com dez meses você já chama todo mundo para quebrar a rua?” Vários equívocos numa mesma fala. Pela ordem: não existem só dois lados na política, a eleição não é cheque em branco para que o governante possa fazer tudo o que lhe der na telha, a crítica é natural numa democracia, e protestos não significam necessariamente “quebrar a rua”. E se por acaso em alguma futura manifestação houver excessos, como o caso dos black blocs, nos protestos de 2013 e 2015, não é preciso abandonar a democracia. Como ficou provado na época.

O ministro continuou sua fala, sendo mais explícito: “Não se assustem então se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez? Ou foi diferente? Levando o povo para a rua para quebrar tudo”. Foi diferente. O AI-5 não foi feito porque o povo estava quebrando tudo. Foi o resultado de uma luta dentro do regime e venceu a ala que queria o endurecimento. “Às favas com os escrúpulos”, disse o então ministro Jarbas Passarinho. Delfim Netto achou que o ato era brando. A frase de Guedes “já não aconteceu uma vez?”, e a evidente ameaça que ela contém, mostra que 51 anos passaram em vão para Paulo Guedes. Ele não entendeu ainda o que havia de errado naquele ato liberticida.

Não viu também a mudança dos tempos. Se fossem repetidos hoje, os crimes do AI-5 afastariam totalmente os melhores investimentos do Brasil. Os novos administradores dos grandes fundos prestam contas aos stakeholders, ou seja, a todos os envolvidos direta e indiretamente em suas captações e escolhas de alocação de recursos.

No governo Bolsonaro já houve manifestações de rua contra e a favor. Normal numa democracia.O ministro gostou muito deu maque apoiava a reforma da Previdência. Houve até atos com presença de ministros do governo em que grupos pediram fechamento do Supremo. O problema nunca foi o que se pede nas ruas, mas o que o governo faz, como reage. Se estimula os ataques às instituições, se reprime com violência desmedida, se usa os atos como pretexto para decisões antidemocráticas.

Alguns tentam isolara economia, dizendo que ela está melhorando, apesar dos péssimos sinais em outras áreas. Eu nunca acreditei que fosse possível essa separação. O ministro ajudou a esclarecer as coisas. Ao ecoar explicitamente a ameaça feita pelo filho do presidente, removeu o suposto isolamento e uniu a economia à parte sombria do governo que abraçou.