Título: Páscoa, soberania da vida
Autor: Frei Betto
Fonte: Jornal do Brasil, 24/03/2005, Outras Opiniões, p. A11

O reverso da crença não é o ateísmo. É a idolatria, a adoração de falsos deuses, como as leis do mercado, o capital ou a livre concorrência num mundo que clama por solidariedade

A Páscoa é a mais importante data cristã, embora o Natal, por razões comerciais, desponte como a festa religiosa de maior impacto na vida social. Principal festa dos judeus e dos cristãos, a Páscoa comemora a ação divina num fato de efeitos políticos tão importantes que se transformou em paradigma: a libertação dos hebreus que viviam como escravos no Egito do faraó Ramsés II, por volta do ano 1250 a.C. Páscoa significa travessia, do Egito para Canaã, através do Mar Vermelho, ou passagem, da opressão à liberdade.

Para os cristãos, a grande passagem e, portanto, o cerne da fé, é a ressurreição de Jesus, cerca do ano 37. Não tivesse Jesus vencido a morte, nossa fé seria vã e ele figuraria entre tantos galileus igualmente condenados à cruz por sublevação pelos romanos que ocupavam a Palestina no século I.

Jesus não ressuscitou como um fantasma. Em choque com toda a cultura da época, os apóstolos testemunharam sua ressurreição na carne. Assim, Platão deveria ter ficado à margem da tradição cristã, pois a ressurreição nega todo dualismo corpo-espírito e glorifica a totalidade humana.

A crítica literária dos textos bíblicos constata, surpresa, que Jesus ressuscitado contradiz tudo que se poderia esperar de um personagem fictício. Tivessem os apóstolos a intenção de ''dar a volta por cima'' frente à morte de Jesus e inventado um Messias que retorna à vida, com certeza não esboçariam uma figura que, ressuscitada, apresenta chagas no corpo - Tomé foi desafiado a tocá-las (João 20, 27) ) e que, aonde chega, indaga se há algo para comer (Lucas 24, 41). A crítica literária constata na construção do relato a descrição de um fato objetivo, por mais intrigante que isso seja à ciência, que guarda autonomia em relação à fé.

Hélio Pellegrino dizia que não há nada mais revolucionário do que proclamar a ressurreição da carne. ''Creio na ressurreição da carne'', rezam os cristãos no Credo, professando que toda a materialidade do Universo será resgatada em Cristo. Hoje, a física quântica nos permite saber que toda matéria é energia concentrada. Cai o dualismo platônico. Há uma espiritualidade inerente às pedras e aos peixes, às aves e às árvores, aos mares e às montanhas. No compasso binário de ''partículas'' e ''ondas'', o Universo pulsa em suas entranhas, lá onde já não se pode distinguir o limite entre energia e matéria. O olhar do místico capta, como enfatizava Teilhard de Chardin, essa vibração do divino no coração da matéria. Não há nisso nenhum panteísmo. O panteísta considera que todas as coisas são substância divina. O místico, que é panenteísta, reconhece em cada detalhe da Criação um sinal, sacramento, da presença de Deus.

Essa concretude do conteúdo da fé projeta uma visão crítica sobre tudo que reduz a possibilidade de a carne atingir sua plenitude na efusão do espírito: a fome, a injustiça, a discriminação racial, a opressão. Neste sentido, a ressurreição é a palavra final de Deus de que nenhum sinal de morte deve prevalecer sobre corpos vivos. A vocação do Universo é a vida, e vida terna e eterna.

Assumir-se como cristão e não centrar-se no direito de vida para todos (''Vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância'', João 10, 10) é, no mínimo, contraditório. O reverso da crença não é o ateísmo. É a idolatria, a adoração de falsos deuses, como as leis do mercado, o capital ou a livre concorrência num mundo que clama por solidariedade.

Não fez ainda a passagem da morte para a vida quem julga que é livre um país no qual 100 milhões de habitantes, entre 180 milhões, vivem abaixo da linha da pobreza. Ou enche a boca de democracia quando, em matéria de partilha de bens necessários à vida, o Brasil ainda não alcança os índices considerados dignos pela ONU. Somos os campeões mundiais de desigualdade social.

Talvez o segredo da felicidade esteja na resposta à pergunta que Nicodemos fez a Jesus: ''Como pode um homem nascer de novo?'' (João 3, 4).

*Frei Betto passa a escrever mensalmente nesta página