O Globo, n. 31543, 17/12/2019. País, p. 4

A delação de Cabral

Aguirre Talento
Bela Megale
Chico Otavio


O ex-governador do Rio Sérgio Cabral assinou acordo de delação premiada com a Polícia Federal, que enviou o material para homologação do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin. Pelo acordo, mantido sob sigilo, o ex-governador se comprometeu a devolver R$ 380 milhões da propina recebida por ele nos últimos anos.

A delação, porém, só terá valor legal caso seja validada pelo STF. A expectativa da PF é que a tratativa seja confirmada antes do recesso do Judiciário, que começa na próxima sexta-feira. Anteriormente, uma tentativa de acordo de delação foi rejeitada pela força-tarefa da Lava-Jato do Ministério Público Federal do Rio.

O acordo não estabelece previamente benefícios penais, por isso ainda não é possível saber quando Cabral sairá da prisão mesmo se a tratativa for aprovada. A efetividade dos relatos do ex-governador sobre os fatos narrados será determinante para estabelecer o tempo que ele será solto. A defesa de Sérgio Cabral afirmou que não irá se manifestar sobre o assunto.

O acordo, assinado pela Diretoria de Investigação e Combate ao Crime Organizado da PF, chegou ao Supremo no início de novembro. A PF pediu que a delação fosse distribuída ao ministro Fachin.

Logo em seguida, o ministro pediu uma manifestação do procurador-geral da República, Augusto Aras, sobre o material. O posicionamento da Procuradoria-Geral da República (PGR) chegou ontem ao Supremo. Augusto Aras afirmou ser contrário ao acordo de delação, rejeitado anteriormente pelo MPF-RJ.

Em seu texto, Aras argumentou que o ex-governador ocultou informações e protegeu pessoas durante a negociação do acordo com a Lava-Jato do Rio. Por fim, também alegou que Cabral pode ser considerado o líder da organização criminosa montada no governo do Rio, e, portanto, não poderia se beneficiar de um acordo de colaboração. Diz, portanto, que o acordo da PF com Cabral está fora dos requisitos legais. Um dos motivos que levaram a força-tarefa do Rio a recusar a delação do ex-governador foi o fato de ele ter omitido a participação de sua mulher, Adriana Ancelmo, nos crimes investigados pela Lava-Jato. Outro ponto que pesou contra Cabral foi não ter indicado meios de recuperar mais recursos desviados pelo quadrilha que integrava.

No entanto, fontes da PF afirmam que na sua negociação o ex-governador mudou de postura e passou a ser “bastante colaborativo”. Nos depoimentos, Cabral citou políticos beneficiários do esquema de corrupção montado em seus governos no Rio e operadores que ajudaram a fazer os pagamentos de propina. A ideia da PF é tentar firmar novos acordos de delação com personagens citados pelo ex-governador. 

Provas documentais

Também chamou a atenção dos investigadores uma outra frente citada nos seus depoimentos: o Judiciário. Cabral narrou sua relação com ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e com o processo de indicação deles aos seus atuais cargos. É por isso que o acordo precisa ser homologado no Supremo Tribunal Federal (STF), já que esses ministros têm foro privilegiado.

Interlocutores com acesso aos depoimentos afirmam que há poucas provas documentais, mas que Cabral fornece caminhos de provas para diversos dos seus relatos. Dizem ainda que as informações prestadas por ele sobre o Judiciário seriam suficientes para novas frentes de investigação na Lava-Jato. O acordo de Cabral rendeu cerca de 20 anexos. Durante seis meses, delegados ouviram o ex-governador de duas a três vezes por semana.

Procurado para falar sobre o tema, Aras afirmou, por meio de nota, que “estranha que procedimento em sigilo legal que só poderá ser publicizado pelo ministro relator, Edson Fachin, após eventual denúncia do Ministério Público seja objeto de tanta especulação e por isso não se manifestará”.

Preso desde novembro de 2016 e já denunciado 30 vezes pelo Ministério Público Federal, Sérgio Cabral já foi condenado 12 vezes na Lava-Jato e suas penas somadas superam 267 anos.

Análise: distância entre polícia e MPF deve aumentar

Desde que começou a confessar os crimes, em depoimentos regulares na 7ª Vara Federal Criminal do Rio, o ex-governador Sérgio Cabral nunca comoveu a força-tarefa da Lava Jato no Rio. Os procuradores da República do grupo sempre desconfiaram de que as revelações espontâneas de Cabral eram seletivas, escondiam dados essenciais sobre a dinâmica da organização criminosa comandada pelo ex-governador e tinham como único objetivo tumultuar o processo legal e abrir caminho para a saída da prisão após três anos.

O acordo de delação firmado com a Polícia Federal aumentou as suspeitas da força-tarefa. Para os procuradores da República que tiveram acesso ao conteúdo, as revelações acrescentam muito pouco ao que já se sabe, não apresentam provas de corroboração e omitem fatos como a participação da ex-primeira dama Adriana Ancelmo na organização. Para agravar, a força-tarefa se surpreendeu ao saber que o acordo de colaboração foi firmado com delegados federais de Brasília que nunca participaram das investigações sobre o esquema Cabral.

Os doleiros Vinícius Claret, o Juca Bala, e Cláudio Barboza, o Tony, personagens centrais da investigação por terem ajudado Cabral a esconder US$ 100 milhões no Uruguai, por exemplo, não foram procurados pelos delegados do acordo.

Desde que a força-tarefa foi montada no Rio, no primeiro semestre de 2016, nunca houve uma efetiva parceria entre o Ministério Público Federal (MPF) e a Polícia Federal em torno das investigações. A rigor, praticamente toda a apuração foi conduzida pelos procuradores da República, cabendo aos delegados e agentes federais a execução de medidas cautelares de prisão e de busca e apreensão. Com o acordo revelado ontem, a distância entre os dois órgãos tende a se ampliar.

Integrantes da força-tarefa do MPF pretendem se empenhar pessoalmente para convencer o ministro Edson Fachin, relator do caso no Supremo Tribunal Federal (STF), a não homologar a delação. Para isso, já contam com o apoio do procurador-geral da República, Augusto Aras, que se convenceu de que a delação é nula. Para isso, os procuradores da República elencaram uma lista de perguntas que, ao longo dos três anos de Cabral atrás das grades, ficaram sem respostas claras.

A força-tarefa alertou ainda que mesmo as informações provenientes da confissão voluntária de Cabral foram recebidas com reservas e pouco usadas nos desdobramentos das investigações. Desconfiados da qualidade dos dados, os procuradores da República temiam que as confissões do ex-governador maculassem os inquéritos. Além disso, a força tarefa lembrou a Augusto Aras que Cabral nunca devolveu os valores desviados.

Assim como o ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, a delação de Cabral esbarra na ideia cristalizada no MPF de que não é negócio trocar o certo pelo duvidoso. Na visão dos procuradores, a prisão de ambos representa um triunfo na luta contra a impunidade. Mesmo não sendo homologado pelo ministro Fachin, o acordo negociado significa agora um risco à estratégia. Os procuradores temem que o Judiciário passe a enxergar Sérgio Cabral como uma espécie de réu-colaborador, cessando assim, em tese, as razões da prisão preventiva.